10 notas sobre a nova versão da Previdência

Rodrigo de Abreu Pinto
7 min readJun 19, 2019

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Aí vai minha opinião sobre a versão reformada da Previdência, levando em conta as principais novidades. As mudanças estão descritas no relatório preparado pelo deputado Samuel Moreira (PSDB), relator da Comissão Especial da Câmara. A partir de hoje, os demais parlamentares da Comissão votarão o relatório, antes do mesmo seguir ao Plenário da Câmara.

Comissão Especial da PEC da Previdência na Câmara.

1. O relatório conservou a espinha dorsal da PEC: idade mínima, alíquotas progressivas e fim da aposentadoria por tempo de contribuição.

A elevação da idade mínima (65 para homem e 62 mulher) é consequência natural do aumento da expectativa de vida. É a mesma mola mestra das reformas previdenciárias dos demais países.

A maior progressividade das alíquotas não apenas torna a previdência mais justa (quem ganha mais, contribui mais), como também aproxima o regime geral ao dos servidores (as alíquotas progridem até o topo do funcionalismo público e sobre a parcela do benefício dos inativos que ultrapassa o teto do INSS).

O fim da aposentadoria por tempo de contribuição impede que pessoas do regime geral se aposentem prematuramente, o que atualmente privilegia os estratos mais ricos que gozam de empregos estáveis (os pobres já se aposentam por idade).

2. Caíram as mudanças na Aposentadoria Rural, no Benefício de Prestação Continuada (BPC) e o aumento do tempo de contribuição da mulher.

As alterações na Rural e no BPC não se justificavam por três razões: 1) atingia a população que mais precisa do colchão da seguridade social; 2) o custo fiscal é pequeno (R$ 130 bilhões); 3) as regras truncadas eram de difícil compreensão.

Não aumentar o tempo de contribuição mínimo das mulheres (de 15 para 20 anos) é um certo, mas julgo que a informalidade do mercado de trabalho brasileiro é tal, e sequer dá mostras de alteração no futuro, que a mesma regra aplicada aos homens também poderia cair.

Além disso, as regras de transição (tanto do RGPS quanto do RPPS) foram minimamente alongadas e tornadas menos bruscas, aliviando o trauma de quem está prestes a se aposentar.

A pressão da oposição parlamentar e das manifestações contra a Previdência surtiram efeitos.

3. Quem poderá sacar o benefício do abono salarial é o trabalhador que ganha renda mensal de até R$ 1.364,43, valor acima do proposta por Paulo Guedes (um salário mínimo) e abaixo do atual (dois salários mínimos).

O abono salarial funciona como um 14º salário para quem está empregado. O programa foi criado na década de 70, momento em que inexistiam outros programas sociais para trabalhadores de baixa renda, e o salário mínimo possuía menor poder de compra. Por isso, diante do contexto de alto desemprego e informalidade, melhor seria se o valor fosse empregado pelo governo, enquanto gasto discricionário, para gerar empregos formais, através de investimento público na construção civil por exemplo. Não fui contra a mudança no abono salarial da proposta inicial. Tampouco vejo maiores problemas na proposta de suavização do relator.

4. As regras da Previdência não poderão ser alteradas senão via emenda constitucional.

De um lado, argumentam que a desconstitucionalização facilitaria ajustes futuros ao ritmo das mudanças demográficas (somada ao gatilho automático para aumento da idade mínima, que também caiu). Do outro, além da perspectiva fundadora da carta de 88 quanto a Previdência, o resguardo quanto a maiorias eventuais e tentações passageiras. Fico com o segundo.

5. A pensão por morte não poderá ser abaixo do salário mínimo, além de garantir o benefício de 100% em caso de dependente deficiência.

A proposta original reduziu para 60% do salário do falecido, contando com aumento de 10% para cada dependente adicional (limite de 100% para 5 ou mais dependentes). Até aí, acho correto, principalmente porque corrige a anomalia de que o contribuinte falecia e a pensão de 100% aumentava a renda per capita da família. No entanto, em caso da família não ter outra fonte de renda, o relator garantiu que o 60% não poderá ser abaixo do salário mínimo.

6. A reforma não dificultará o acesso ao auxílio-reclusão.

Parece uma coisa pequena (o auxílio-reclusão corresponde a 0,3% do gasto previdenciário), mas serve como resposta a sanha punitivista do governo. O auxílio-reclusão é uma inovação brasileira (extremamente incomum em outros países) e tem sido alvo de presidentes interessados no apelo populista do “bandido bom é bandido morto”. Michel Temer ensaiou mudar e agora foi a vez Bolsonaro. O relator da reforma impediu que o auxílio fosse pago apenas ao dependente que ganha até um salário mínimo, mantendo o teto em $ 1.364,43 (corrigido anualmente).

7. Os benefícios serão reajustados pela inflação.

É certo que não estamos em um cenário de inflação galopante, mas não é menos certo que a inflação ainda corrói parte importante do poder de compra, principalmente de quem ganha pouco. A nova versão da Previdência manteve os reajustes segundo a inflação, impedindo a dinâmica perversa em que só quem tem lobby consegue sempre repôr as perdas.

“Eu acho que houve um recuo que pode abortar a nova Previdência”, disse Paulo Guedes sobre o relatório.

8. O regime de capitalização não está mais em pauta.

Tomando por base as alterações acima (Rural, BPC, abono salarial e regra de transição), a economia de R$ 1.237 bilhões caiu para R$ 913 bilhões (26% de perda).

O que essa conta não mostra é que a economia fiscal é maior do que a anterior, caso consideremos a retirada do regime de capitalização. Como reparou Pedro Fernando Nery, aquelae cálculo “ignora a retirada do texto da capitalização, que necessariamente provocaria perda de arrecadação e aumentaria o déficit — em um montante desconhecido”. O governo sequer apresentou cálculos e detalhes sobre o custo de transição — que é altíssimo, já que uma geração inteira deixaria de contribuir. Seria um erro apostar na mudança de regime em um contexto de ajuste fiscal. Sem falar que a consequência alardeada por Guedes de que a capitalização, ao findar as contribuições patronais, estimularia a geração de empregos, é um discurso frouxo (para quem não lembra, é a mesma reza que justificou a reforma trabalhista de Temer).

Governadores pressionam para que reforma atinja Estados.

9. Os estados e municípios não entrarão automaticamente na reforma.

Do ponto de vista econômico, seria ótimo que reforma fosse aplicada automaticamente aos servidores dos estados e municípios. No entanto, pensando politicamente, é importante que os governadores e as assembléias estaduais e municipais compartilhem as responsabilidades. O ônus, claro, é a perda da economia de R$ 350 bilhões. Uma boa alternativa seria pensar uma alternativa semelhante a da proposta de Temer em que abria-se uma janela de seis meses para que as assembléias locais aprovassem uma reforma diversa. Caso contrário, passariam a valer as regras da aposentadoria dos servidores da União.

10. Aumento da CSLL dos bancos e repasse do FAT ao INSS (e não mais ao BNDES).

Essas são duas novidades que não tem propriamente a ver com a reforma da Previdência (não economiza gasto primário), mas majora novas fontes do financiamento para a Tesouro e o INSS.

O relatório determinou o aumento da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) dos bancos de 15% para 20%, ampliando a arrecadação do governo. É verdade que o aumento da CSLL seria um assunto melhor discutido no âmbito da reforma tributária. No entanto, a reforma tributária que corre no Congresso não inclui a taxação de rendas e patrimônios, o que empurraria a majoração de novas fontes de financiamento (necessárias para custear as alterações do relator) para um futuro incerto. Vale lembrar que a taxa de 20% foi vigente de 2016 até 2018. Ou seja, seria questão de resgatar uma regra tributária recente, ao menos até que aprimorassem novas saídas para o problema de custeio.

Até então, o BNDES recebe 40% do PIS/PASEP (o que representa um terço do financiamento disponível ao banco). Paulo Guedes reduziu esse valor para 28%, reservando 12% para o regime geral. Agora, o relator determinou que os 40% irão para a Previdência. A medida prejudica ainda mais o BNDES, que atualmente sofre pressão para que devolva os aportes do Tesouro que recebeu entre 2009 e 2014, tornando-o ineficaz em exercer sua função quanto aos financiamentos de longo prazo. Faço coro ao que disse o ex-presidente do BNDES Dyogo Oliveira: “Usar os recursos para cobrir o buraco do custeio diário do governo é um equívoco e contraria um dos principais objetivos da reforma, que é retomar os investimentos na economia.”

Novo presidente do BNDES, Gustavo Montezano, pode apanhar um banco desidratado.

— Ao analisar os pontos acima, excetuando alguns ajustes pontuais (sou contra o cálculo do benefício incluir todos os salários, sem excluir os 20% menores como prevê a regra atual), considero que a reforma da Previdência alcançou um patamar satisfatório. Além disso, conta com boas chances de passar no Congresso, uma vez que abraçou demandas da oposição, assim como retirou a obrigação de contribuição extra de servidores estaduais para cobrir déficit.

Em resumo: tanto em relação a proposta inicial de Paulo Guedes quanto a Previdência corrente, a nova versão não somente desacelera o crescimento dos gastos primários, bem como a torna menos corporativista e injusta, sem atingir a base da pirâmide nem arriscar uma mudança de regime.

Resta que o governo lance mão do espaço fiscal aberto para impulsionar os investimentos já no curto prazo, sem abrir mão de também priorizar os gastos ligados ao aumento da produtividade (agenda de longo prazo). Quando ao Congresso, uma vez que a agenda da Previdência seja superada, não lhe cabe outra coisa senão aproveitar o embalo e discutir o restante do repertório de alternativas institucionais para o país.

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Rodrigo de Abreu Pinto
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Written by Rodrigo de Abreu Pinto

Advogado (PUC-Rio) e Filósofo (FFLCH-USP). Diretor de Inovação da Câmara de Comércio Brasil-Portugal.

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