6 meses de governo Bolsonaro: a lógica do poder

Rodrigo de Abreu Pinto
7 min readJun 28, 2019

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Não passa despercebido que um texto sobre os seis meses de governo, afinal, se concentre em sua lógica de funcionamento, ainda mais quando as previsões apontavam longe. O otimismo do mercado (sim, naquele longíquo final de 2018) supunha que então falaríamos da retomada dos investimentos após a reforma da Previdência. Os setores progressistas prenunciavam a escalada autoritária que não aconteceu, também porque a previsão serviu para mobilizá-los como há muito não se via. A coisa foi a tal ponto que chegamos a acreditar que o presidente não sobreviveria, nascendo disso não sei quantas hipóteses diferentes. Mas os prognósticos estridentes não se confirmaram, o que torna falar da governabilidade não apenas uma consequência da “usina de crises” e “show de besteiras” do governo (as expressões são de Rodrigo Maia e Santos Cruz), mas também porque explica a ruína daquelas apostas iniciais.

Não por outro motivo, os cientistas políticos foram bastante cobrados nesse primeiro semestre (por exemplo, veículos como Folha e Estadão integraram mais deles como colunistas). Para explicar como se deu a relação entre os poderes, uma boa interpretação veio de Fernando Schüler ao cunhar o sistema de corresponsabilidade. Segundo a explicação, a tradição centralizadora do nosso presidencialismo estaria se tornando mais permeável ao Legislativo, tornado responsável em tocar a agenda junto ao Executivo. O nome é ambíguo porque “corresponsabilidade” pode fornecer a falsa ideia de consenso entre as partes. Na verdade, completa o autor, “a lógica da corresponsabilidade e o protagonismo parlamentar vêm mais da fragilidade do que da força do atual governo”.

Falar em “protagonismo parlamentar” deve parecer estranho para quem chegou atrasado. Ao contrário, seis meses atrás, dizia-se que presidente concentraria poderes, enquanto o próprio Bolsonaro não perdia oportunidade em amaldiçoar a “velha política”. Ele bem que tentou bater de frente ao Congresso quando convocou manifestações de apoio ao Executivo, tentando guinar uma lógica de presidencialismo plebiscitário. Assim, tentava “constranger os legisladores a votar de acordo com as preferências do chefe do Executivo via pressão dos eleitores”, como descreveu Carlos Pereira. A questão é que os protestos não foram grandes o suficiente para intimidar os parlamentares, mas não foram pequenos a ponto de convecê-lo de que não haveria alternativas senão ceder ao famigerado presidencialismo de coalizão. Para isso, o presidente teria que não apenas distribuir cargos e ministérios, mas mitigar a militância virtual que hostiliza os deputados a cada voto contrário ao governo.

Foi nessa cruzada que entrou a lógica da corresponsabilidade, entendida como uma excrescência formada nas brechas da antinomia entre Executivo e Legislativo. Por um lado, o presidente Bolsonaro passou a se concentrar no que fez a vida toda como parlamentar e sindicalista de militares e policiais. Como é fácil perceber, é discutindo questões miúdas que o presente se sente realmente à vontade, basta notar a prontidão com que fala sobre as mudanças nas lei de trânsito, o confisco dos bens de traficantes ou a permanência da Fórmula 1 no Brasil. Nas questões maiores, por sua vez, o presidente abriu mão da dominância política em relação ao Legislativo, aceitando pegar carona nos ganhos ou dividir os custos das perdas (como no caso da reforma da Previdência).

Enquanto o network de Bolsonaro se limitava aos quadros dos exército, os presidentes da Câmara e do Senado montaram uma eficiente equipe de consultores legislativos e economistas, reunindo desde o Instituto Fiscal Independente até nomes como Marcos Lisboa, Marcos Mendes, Samuel Pessôa. O objetivo é mover uma agenda de reformas que reúna as preferências de um Congresso com forte representação empresarial, junto as disposições liberais dos líderes Rodrigo Maia e David Alcolumbre. A lista de medidas que se seguirão a reforma da Previdência é extensa: reforma tributária, reformatação do FGTS, autonomia do Banco Central, otimização do sistema bancário para redução do spread.

O que poderia complicar a questão é que esse mesmo grupo de parlamentares, assim como o STF, não estão dispostos a levar adiante a pauta do presidente relativa aos costumes e outros itens polêmicos como meio-ambiente e segurança pública. Não à toa, o governo acumula derrotas como a flexibilização do Código Florestal, a extinção dos conselhos participativos, a criminalização da homofobia. Não obstante, o que deve ser levado em conta é que Bolsonaro não se importa absolutamente com com as derrotas. Tanto que continua escrevendo decretos e medidas provisórias mesmo sabendo que serão barradas mais na frente, caso das recentes insistências no decreto das armas e na transferência da demarcação de territórios indígenas para o Ministério da Agricultura.

O que importa é perder mas manter a militância acesa, provando que está tentando realizar as promessas de campanha e ainda conquistando adversários em quem colocar a culpa. Para completar o pacote, os apoiadores ganham periodicamente a cabeça de algum “esquerdista”, enfim descoberto pela contínua caça às bruxas que o governo realiza em seus próprios meios. Os últimos casos foram o general Juarez que foi expulso dos Correios porque tirou fotos com parlamentares da oposição, e Joaquim Levy (ex ministro de Dilma) que saiu do BNDES porque não descobriu nenhuma caixa-preta contra os ex-governos do PT.

Mesmo assim, erra quem acha que Bolsonaro simplesmente se apequenou em sua esfera. Em primeiro lugar, chama atenção que o presidente compareceu na Marcha Para Jesus e já admitiu disputar a reeleição em 2022. Em seguida, a surpreendente saída do general Santos Cruz se deu justamente na esteira da intensificação das estratégias de comunicação do governo. Isso porque era o ex-ministro quem limitava a participação do presidente em atividades populescas como o Programa do Ratinho e estádios de futebol. Além de desaprovar o uso das redes pelo filho Carlos Bolsonaro, o que classificou como “fofocagem desgraçada” em sua primeira entrevista após sair do governo.

O momento que tais mudanças acontecem não é menos trivial: o presidente estará à vontade para capitalizar em cima da crise dos vazamentos da Intercept. Talvez você se pergunte: qual interesse de Bolsonaro nisso? A resposta não é difícil, principalmente porque não se passaram muito tempo desde as eleições. O recrudescimento da polarização, através do plebiscito entre quem é a favor ou contra a Lava Jato (e a prisão de Lula), permite não apenas eletrizar seus apoiadores e ideólogos youtubers, como reúne novamente o eleitorado de centro-direita que se afastou após o início do governo. Agora, novamente, todos reunidos em torno de Bolsonaro, o líder do antipetismo por excelência.

O que se percebe é que, por mais que parlamentares como Maia e Alcolumbre cresçam, as constantes crises e frituras no Executivo tem enfraquecido os nomes próximos do presidente e rasgado a capa dos super-ministros, o que paradoxalmente torna Bolsonaro o homem forte do governo. Enquanto Moro se enfraqueceu com os vazamento e agora é escudado por Bolsonaro (a cena no jogo do Flamengo é didática), o ministro Paulo Guedes ameaça sair e o presidente lembra que “ninguém é obrigado a ficar como ministro meu”. Ou seja, se antes os ministros eram indemissíveis, Bolsonaro retomou o protagonismo, incluindo nisso o sumiço do vice-presidente Mourão, incapaz de conquistar a confiança dos políticos como fez Michel Temer quando era vice de Dilma.

Esse ensejo paradoxal justifica a adesão do presidente ao sistema de corresponsabilidade (que em princípio lhe enfraquece), pois Bolsonaro parece ter encontrado uma posição interessante em meio a falência do modelo anterior. É certo que não teremos um governo de coalizão, já que a associação ao Congresso e a perda de atrito junto ao Centrão vão de encontro aos credos que galvanizam a militância bolsonarista. Todavia, não é menos certo que também não teremos o caos e o enfrentamento generalizado, pois os parlamentares estão ganhando relevo enquanto lideram uma parte da macropolítica do governo. Por causa dessa “corresponsabilidade”, Bolsonaro não se vê pressionado pela ameaça de paralisação do governo (assim como aconteceu com Dilma e Collor), ainda que essa ameaça já tenha assumido várias formas nesses seis meses — desde o impeachment, passando pelo lockout contra as medidas provisórias, até o sinal de mudança formal ao parlamentarismo.

Sem embargo dessa estabilidade que então experimenta, é difícil dizer a real resiliência dessa lógica de corresponsabilidade. O sistema anterior está ocioso, mas o desenho institucional ainda está voltado para ele, o que torna incerta a eficácia do Congresso em assumir o protagonismo decisório. Se é verdade que a recente aprovação das emendas impositivas fragilizou o poder político do presidente, o presidencialismo de coalizão contava com um líder que dispunha de outros capitais políticos (iniciativa legislativa; controle de agenda; ordem e velocidade na liberação das emendas; distribuição de cargos e benesses governamentais) que endogeneizam os múltiplos partidos para uma convergência estável.

Na ausência disso, as afinidades pragmáticas entre os deputados pode não ser suficiente para garantir a disciplina na hora das votações, sem a qual o governo pode sofrer de uma paralisia de 2º grau, em que caminha capenga em relação aos grandes projetos. Seguindo o exemplo de Sérgio Abranches, “mesmo admitindo-se a concordância amplamente majoritária com a necessidade, por exemplo, de reformar a previdência, como, quando e com que profundidade promover essa reforma está longe de ter a concordância majoritária”. O que deixa em aberto a questão: se a agenda do Congresso não caminhar, Maia e Alcolumbre vão correr atrás dos incentivos que somente o presidente pode oferecer? Ou apostarão em outro caminho mais arriscado como já fizeram antes?

O perigo desse modelo capenga é a economia continuar engatinhando enquanto os contingenciamentos se sucedem e o desemprego não ensaia recuperação. O presidente diz não entender de economia, mas nem precisa muito para saber que não bastam os acenos com a redução na conta de luz e no preço da gasolina, se as famílias ainda não conseguiram sanar as dívidas e os serviços públicos funcionam no limite do shutdown. Permanecendo assim, do lado de fora, aumenta o risco de instabilidade social; e dentro, cresce a disputa dos ministérios pelos recursos escassos. Acima de tudo isso, à cada mês que passa finda o prazo que Bolsonaro pode culpar os governos anteriores pela letargia. Se as manifestações da esquerda e os ataque de Rodrigo Maia já incomodaram, é melhor jair se acostumando que só passaram seis meses.

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Rodrigo de Abreu Pinto

Nascido em Recife. Formado em filosofia pela FFLCH-USP. Mora no Rio de Janeiro e estuda direito na PUC-Rio.