A ética torcedora e o espírito da Lei da SAF

A pré-temporada dos clubes brasileiros foi marcada por negociações sendo que, desta vez, um pouco diferentes: em lugar da especulação sobre a chegada de novos jogadores, os torcedores discutiram a vinda de investidores.

O motivo disso foi a aprovação da Lei nº 14.193 que instituiu a Sociedade Anônima do Futebol (SAF), um novo tipo de sociedade empresarial cuja atividade principal consiste na prática do futebol, feminino e masculino, em competição profissional.

Torcedores do Botafogo recebendo John Textor.

A Lei da SAF representa um marco regulatório para a transformação dos clubes em empresas porque foi além das leis que anteriormente tentaram o mesmo, caso da Lei Zico e da Lei Pelé. Enquanto essas se limitaram a permitir a transformação dos clubes associativos em empresas (limitadas ou anônimas), a Lei da SAF constituiu um sistema avançado que acomoda as necessidades dos clubes interessados em fazer a transição.

Dentre os instrumentos jurídicos assegurados pela lei para a legitimação, a organização e a transformação dos clubes em sociedades anônimas, destacam-se em apertada síntese:

(i) O organismo societário em que se incluem as normas de governança, transparência e responsabilidade que reformam as estruturas de gestão armadoras dos clubes;

(ii) Os mecanismos para quitação dos passivos (Regime Centralizado de Execuções) e cumprimento dos tributos (Regime de Tributação Específica do Futebol) que representam benefícios adaptados às SAFs já que menos onerosos do que o regime aplicado às demais empresas; e

(iii) A divisão do capital da SAF em ações que podem ser negociadas com terceiros (no caso, os investidores) visando à capitalização do clube.

A contraparte do surgimento de um arcabouço jurídico adequado foi a panaceia dos torcedores que desde então falaram mais de Ronaldo e John Textor do que de Hulk e Gabigol. Essa empolgação é sem dúvida positiva, em especial porque ajuda a vencer as resistências de dirigentes que resistirão a transformar o clube numa SAF com as respectivas regras de governança que naturalmente desafiam o fisiologismo e a falta de transparência que historicamente marcam a administração dos clubes brasileiros.

Ainda assim, há algumas questões que precisam ser melhor compreendidas pelas torcidas e dirigentes para que a Lei da SAF seja empregada de acordo com a integridade das suas possibilidades.

Talvez a mais importante delas é que “virar uma SAF” é uma coisa, enquanto “vender a propriedade e o controle da SAF para um investidor” é outra. Vamos por partes.

Sendo uma lei atrelada à atividade do futebol, a Lei da SAF veda que o clube como um todo se torne uma Sociedade Anônima do Futebol, já que a limitação da atividades futebolística estabelecida logo no artigo 1º afasta o emprego de recursos em atividades e modalidades esportivas estranhas ao futebol, tais quais os esportes amadores desenvolvidos nos clubes tradicionais.

Então como acontece? Uma vez que os associados do clube deliberam pela criação da SAF, o clube integraliza o capital da SAF por meio da transferência de seus ativos relacionados à atividade futebolística, tais como, mas não exclusivamente, nome, marca, dísticos, símbolos, propriedades, patrimônio, ativos imobilizados e mobilizados, inclusive registros, licenças, direitos desportivos sobre atletas e sua repercussão econômica, como lemos no artigo 3º.

Em outras palavras: o clube constitui a sua SAF ao transferir-lhe o patrimônio relacionado ao futebol para integralização do capital subscrito (enquanto o restante do patrimônio permanece no clube), e então o próprio clube se torna o detentor de 100% das ações da SAF. Foi isso que fizeram Cruzeiro e Botafogo, por exemplo.

Somente em seguida, os clubes venderam 90% de suas ações para Ronaldo e John Textor, que então se tornaram os controladores de ambas as SAFs (já que se tornaram detentores de mais de 50% do capital social). A principal vantagem da venda a terceiros é a injeção imediata de capital que permite uma melhora depressa do passivo do clube, podendo ainda incluir investimentos em jogadores ou em infraestrutura no curto prazo.

Muito embora Cruzeiro e Botafogo assim tenham feito, a Lei da SAF não determina a venda compulsória do controle da SAF a um terceiro. Em lugar disso, a lei viabiliza a manutenção da propriedade das ações e do controle da SAF pelo próprio clube, sendo uma virtude da lei assegurar a autonomia privada dos clubes em relação ao desenho dos arranjos que hão de conformar a relação com a SAF.

Portanto, a finalidade da Lei da SAF não é, via de regra, submeter os clubes para à venda a um terceiro. Antes, a SAF é um meio para que os propósitos que lhe deram origem sejam atingidos, a saber, a perenidade dos clubes, por ora ameaçados pelas dívidas, mediante a fixação de regras de governança e controles internos próprias às sociedades anônimas, tal como dispostas na Lei de Sociedade Anônimas (nº 6.404/1976) também aplicável às SAFs.

A SAF é um instrumento de transição dos clubes para uma gestão mais profissional por meio da qual os clubes estarão, ao menos em tese, mais capacitados a gerar receitas para a quitação dos débitos, incluindo o auxílio de mecanismos especiais de parcelamento dos passivos e simplificação tributária futebol cuja contrapartida para obtê-los é justamente a adoção da forma jurídica da SAF.

Uma vez criada a SAF, a venda da maioria das ações para um investidor é uma decisão de cada clube junto à sua torcida e associados. Nas palavras de um dos criadores da Lei da SAF, : “não há — e não haverá -, no ambiente do novo mercado do futebol, verdades absolutas; cada caso deve ser construído levando em conta as características do próprio clube e do seu time, bem como do que eles precisam e do que pretendem (ou podem) exigir e realizar”.

Os clubes devem iniciar uma discussão junto a torcida e associados a respeito da criação do SAF e do modelo a ser adotado, com ou sem a alienação do controle a um terceiro, avaliando a estrutura jurídica que melhor tutele o interesse dos torcedores do clube.

O princípio é de que o modelo adotado será um importante condicionante da relação entre o clube e sua torcida, já que a distribuição de poder no interior da SAF corresponde a determinada alocação dos direitos políticos — seja ao concentrá-los nas mãos de um investidor, seja ao mantê-lo com os associados — interferindo no grau de participação que o torcedor terá a partir de então.

Essa discussão é importante porque o torcedor, em razão da sua paixão e identidade com o clube, não é um consumidor qualquer. A principal diferença entre uma SAF e uma empresa tradicional (produtora de bens e serviços) está na intensidade do vínculo afetivo com os stakeholders. A própria Lei da SAF entendeu isso ao assegurar que o clube e seus associados permanecem com o direito de veto contra alterações no nome, símbolo e endereço da SAF mesmo após negociá-la com um terceiro.

No entanto, a relação do torcedor com o clube pode ir além desse papel negativo, na linha do que defendem vários teóricos e pesquisadores do futebol para quem a cultura de frequentar as arquibancadas deve se converter numa cultura da participação, com maior envolvimento dos torcedores nas decisões dos clubes, contrariando as designações dos torcedores como “doentes”, “roxos” e “fanáticos” ao imaginá-los como os maiores interessados no futuro dos clubes.

Falar assim pode parecer estranho em um país cuja paixão dos torcedores ainda é inversamente proporcional a sua participação na administração dos clubes. O cenário brasileiro se traduz numa imensa maioria de torcedores que não são associados aos clubes ou, mesmo quando são, apenas usufruem do parque esportivo e adquirem ingressos promocionais, sem que estejam implicados no processo político dos clubes pela participação em assembleias convocadas para deliberar temas relevantes (não apenas a eleição do presidente, mas questões de ordem política e esportiva que atravessam a existência de um clube).

Diante desse cenário de baixa participação, é verdade que a venda do controle para um proprietário em quase nada modificaria a participação dos torcedores no clube.

Por outro lado, não é menos verdade que a venda do controle praticamente sepulta qualquer possibilidade de transformação rumo a uma cultura da participação. Uma boa pergunta a se fazer é: o desinteresse dos torcedores também não é reflexo do fisiologismo que predomina nos clubes brasileiros? Se a resposta for afirmativa, é sinal de que as circunstâncias que tornaram a Lei da SAF urgente são os mesmos que historicamente afastaram os torcedores dos clubes.

Fato é que quando se fala na alienação do controle para um terceiro, um exemplo recorrente para provar o perigo dessa venda é de que mesmo às vésperas de uma final de campeonato, o proprietário não hesitaria em vender o camisa 10 caso surgisse uma proposta irrecusável, a despeito de prejudicar o time na partida decisiva. Ao mesmo tempo que não faz sentido imaginar que o proprietário seria draconiano a esse ponto, o risco que destacamos aqui é de ordem ainda mais profunda: dificultar a participação dos torcedores, a democratização da estrutura dos clubes e, em suma, desperdiçar a possibilidade de tradução da paixão em engajamento cívico e participativo.

O exemplo do futebol alemão ilustra essa preocupação quanto aos efeitos da presença de um proprietário estranho à relação original entre o clube e os torcedores. Ali vigora a chamada Lei do 50+1 pela qual o clube deve deter 51% das ações da SAF, podendo alienar a um terceiro apenas os 49% restantes, sendo esse um pré-requisito para competir na Bundesliga, Bundesliga 2 e Liga 3.

Pode-se dizer, afinal, que a Alemanha adota um modelo híbrido: garante o controle das SAFs aos clubes e seus associados; e ao mesmo tempo abre espaço a capitalização dos clubes, já que permite a venda de ações que não excedam metade do capital social do clube.

Assembleia de sócios do Bayern de Munique,

No caso brasileiro, a dificuldade está em que os investidores estão adotando a postura de ingressar no clube apenas caso detenham o controle (isto é, mais de 50% das ações) — como resumiu Pedro Mesquista (head do investment banking da XP), “”. Mesmo nesse caso, a Lei da SAF confere a possibilidade de capitalização dos clubes por outras vias já que, além da venda de ações, os clubes podem recorrer a emissão de valores mobiliários (como a “debênture-fut” criada pela própria lei).

Ainda que ausente regra parecida da Alemanha, a flexibilidade da Lei da SAF viabiliza o arranjo em que o controle da SAF permanece com o clube, combinando as vantagens do associativismo (participação dos associados) com as vantagens da sociedade anônima tal como adequada a atividade futebolística (governança e mecanismos para quitação das dívidas e pagamento dos impostos).

O desafio adicional é que a transformação, se bem vista, deve ocorrer em dois âmbitos: tanto para a criação da SAF, quanto para a transformação das estruturas do clube que controla a SAF.

É bem verdade que várias das regras da Lei da SAF já conferem segurança na administração da SAF pelo clube, evitando a prevalência de interesses fisiológicos ao estabelecer normas como a existência obrigatória do conselho de administração e do conselho fiscal com regras claras de composição do Conselho de Administração da SAF que evitem conflitos de interesses; a submissão das demonstrações financeiras a auditoria externa independente; e a publicação, na internet, da composição acionária, estatuto e atas das assembleias

Para além disso, no âmbito da própria associação, será necessário prever regras que tornem a associação mais democrática e profissional justamente para atrair a participação de novos associados. O desafio não é pequeno, afinal, o associativismo não dispõe de meios para sufocar o amadorismo e a falta de transparência, a exemplo da ausência de mecanismos efetivos de responsabilização dos dirigentes das associações por gestão temerária, como os presentes na Lei das Sociedades Anônimas e automaticamente aplicáveis às SAFs.

Nesse sentido, os clubes devem aproveitar o embalo da transformação em SAF para, no âmbito da associação, tomar medidas tais quais:

(i) aumento do nível de governança e compliance (comitês de auditoria e de ética, por exemplo);

(ii) criação de canais de transparência e disclousure das informações aos sócios;

(iii) extinção de privilégios como títulos de conselheiro benemérito;

(iv) lançamento de programas de sócios que incluam o direito de voto aos associados. ao contrário dos programas de “sócio-torcedor” privados de direitos políticos;

(v) adoção de eleição proporcional para o Conselho, em vez do modelo de “chapa-única” que predomina em vários clubes brasileiros.

Seja qual caminho escolhido, a transformação em SAF é apenas o primeiro passo. A lei, afinal, não tem um fim em si mesma, mas é o instrumento estruturante para que as transformações possam acontecer.

Cabem aos clubes, junto às suas torcidas, debaterem a lei antes de tomarem as decisões que erguerão as primeiras pedras do longo caminho que o futebol brasileiro tem pela frente.

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Nascido em Recife. Formado em filosofia pela FFLCH-USP. Mora no Rio de Janeiro e estuda direito na PUC-Rio.

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Rodrigo de Abreu Pinto

Nascido em Recife. Formado em filosofia pela FFLCH-USP. Mora no Rio de Janeiro e estuda direito na PUC-Rio.