A contradição de Tarcísio: IA nas escolas… e a FAPESP com isso?
Causou barulho quando a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo determinou o uso do ChatGPT para a preparação de aulas e atividades para os alunos da rede pública. O governador Tarcísio de Freitas veio à público para defender a medida, sob a justificativa de que “a gente não pode deixar de usar a tecnologia por preconceito”.
A pergunta a ser feita, na verdade, é se a tecnologia não estaria sendo usada por preconceito — isto é, antes mesmo de formar um conceito a respeito. Ainda mais porque a medida integra um amplo projeto da Secretaria de Educação com foco na automatização dos processos educativos, do qual também fazem parte apps como o fluencímetro (ferramenta de análise da fluência de leitura dos alunos) e a assistente virtual de correção de redações, ambos baseados em inteligência artificial.
Contra isso, cerca de 70 mil professores da rede estadual realizaram a chamada “greve dos aplicativos”, em que deixaram de lado as plataformas digitais impostas pelo governador e o seu secretário de Educação, Renato Feder. Os professores chamaram atenção aos riscos na adoção irrefletidas das IAs, como a atomização dos alunos, a reduzida autonomia pedagógica dos professores e a falta de transparência dos apps.
Quase simultaneamente, o mesmo governo de São Paulo ameaçou cortar 30% do orçamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), a agência paulista de financiamento à pesquisa científica e tecnológica. A Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2025, recém-encaminhada pelo Executivo à Assembleia Legislativa, incluiu artigo que permite a redução das receitas destinadas a FAPESP em até R$ 600 milhões.
Só que a FAPESP, uma das maiores agências de fomento à pesquisa científica e tecnológica do Brasil, é crucial para a incorporação da IA por aqui. A começar porque a agência financia milhares de startups e pequenas empresas em áreas inovadoras, a exemplo da startup Huna que criou uma tecnologia de IA para a detecção de câncer de mama por meio do exame de sangue.
Além disso, a agência mantém inúmeros centros de pesquisa voltados a formação de pessoal, difusão de conhecimento e transferência de tecnologia, inclusive em IA. O C4AI — Centro de Inteligência Artificial, por exemplo, conta com 250 pesquisadores e diferentes linhas de pesquisa que adaptam o país para os impactos da IA, como a habilitação do Natural Language Processing de alto nível para o português (escrito e falado).
Assim ocorre porque o melhor uso da IA depende do atendimento às necessidades que nos são próprias, sobretudo na educação. Um bom professor vai além dos conteúdos, ele conhece as dificuldades de aprendizagem dos estudantes brasileiros e por isso sabe a melhor forma de ensiná-los. Quando não é assim, resta o trabalho pedagógico padronizado e convertido em ações instrumentais, incapaz de auxiliar a construção do pensamento crítico dos alunos.
A Academia Brasileira de Ciência há pouco divulgou um relatório denominado “Recomendações para o avanço da inteligência artificial no Brasil”, onde abordou a IA na educação do seguinte modo:
“[O]s dados e modelos devem ser adaptados para atender às necessidades específicas dos estudantes brasileiros. Por isso, devem levar em consideração nuances culturais, idiomas locais e o contexto socioeconômico no qual o sistema educacional opera. É essencial, ainda, que educadores e alunos sejam preparados com os conhecimentos necessários para utilizar efetivamente as novas tecnologias de IA”.
Se o governo paulista não age assim, é porque está às voltas com uma visão monolítica da tecnologia que suplanta a investigação de como as ferramentas podem ser remontadas a fim de atender as necessidades locais.
O filósofo chinês Yuk Hui ensina que “[a] tecnologia em si mesma não é neutra, carrega formas particulares de conhecimentos e práticas que se impõem aos usuários, os quais, por sua vez, se veem obrigados a aceitá-las”. Nem mais, nem menos do que a universalização das tecnologias atuando conforme as diferenças de poder em que o mais forte exporta tecnologia, conhecimento e valores, enquanto desdenha dos saberes do mais fraco.
Em lugar disso, Yuk Hui resgata um ensinamento taoísta sobre a técnica, tal como ilustrado na lenda do açougueiro Pao Ding. A maestria da técnica do açougueiro está em seguir as dobras naturais do animal, de tal modo que a lâmina desliza entre os ossos e tendões, sem jamais forçar o corte para despedaçá-los.
Yuk Hui destaca a que ponto isso traduz uma harmonia com a natureza. Conclui disso que a melhor técnica é a que causa menos interferência no ambiente em que é aplicada. Uma técnica que não é imposta de cima para baixo, mas que se conecta às condições naturais de cada ambiente — uma cosmotécnica, portanto, como chama Yuk Hui.
Explorar cosmotécnicas não implica em recusar a inteligência artificial, mas abrir espaço para imaginações tecnológicas. São as novas tecnologias que devem estar a serviço de um projeto educativo institucional, e não a educação arrastada a reboque por tecnologias terceirizadas e operadas por outros países.
Isso, no entanto, requer investimentos estáveis em infraestrutura tecnológica, programas de capacitação e bolsas científicas — em resumo, atividades da alçada da FAPESP e que estão ameaçadas pelos cortes.
A IA tem enorme potencial para auxiliar — não substituir — o trabalho dos professores, desde que sejam estabelecidos padrões tecnológicos, regulatórios e de governança. Sem isso, resultará em uma distribuição desigual dos riscos e benefícios. As escolas da rede pública submetidas a uma assimilação voraz da tecnologia, enquanto as escolas de classe média sem a mesma pressa — justamente para que a qualidade do ensino não seja colocada em risco — admitindo a adoção de IA à medida que exista comprovação de sua eficácia para tais fins.
Não é hora de cortar investimentos em ciência e tecnologia, e muito menos de exigir a ampla adoção de IA da noite para o dia.