A conversão do Google em IA generativa ameaça a internet
Acessar o buscador. Digitar a questão. Ver-se diante da lista de links azuis. Clicar em um ou mais… até que a busca seja saciada. Os usuários da web agem assim há pelo menos 20 anos — o Google, afinal, foi fundado em 1998 e se popularizou nos anos seguintes.
Dias atrás, em sua conferência anual de desenvolvedores, a Google anunciou o AI Overview, uma nova ferramenta de busca que incorpora inteligência artificial e altera radicalmente a liturgia acima descrita.
Até então, o usuário solicitava e o motor de busca listava os sites em que as informações poderiam ser encontradas. A partir de agora, o próprio buscador responde as consultas com um texto curto no topo da página, enquanto os links ficam listados na parte de baixo. Ou seja, o Google não só realiza a pesquisa, como fornece uma conclusão a respeito, o que antes exigia que o usuário visitasse vários dos sites sugeridos.
É verdade que o Google já vinha introduzindo respostas automatizadas, só que estavam limitadas a perguntas extremamente simples — “a que horas é o jogo da seleção brasileira amanhã?”, por exemplo. O AI Overview é bem diferente porque responde a qualquer pergunta, inclusive as mais complexas, ao mesmo tempo que os links para outros sites se tornam meros coadjuvantes.
Essa é maior mudança já realizada pelo Google em sua ferramenta de busca — a qual representa nada menos que 57% das receitas da companhia, segundo dados do primeiro trimestre. A causa é a revolução das IAs em curso à medida que os chatbots reformulam radicalmente o conceito de busca. Por que dar um google se o próprio Google pode me dar?
Até agora, os esforços do Google no tocante às IAs estavam concentrados no Gemini, o seu chatbot ao estilo ChatGPT. O AI Overview implica que as diferenças entre a ferramenta de busca e o Gemini serão minimizadas de uma vez por todas. A exemplo do Bing, a ferramenta de busca da Microsoft que adotou tecnologia do ChatGPT (associado a colaboração entre Microsoft e OpenAI) para oferecer respostas diretas semelhante ao AI Overview.
Desde que entrou em funcionamento há poucos dias, o recurso do Google já resultou em inúmeros absurdos, incluindo a recomendação de cola para grudar o queijo da pizza. Decerto que verdadeiras tragédias poderiam ocorrer se tais recomendações fossem seguidas à risca, mas outras consequências do AI Overview são menos pronunciadas, e nem por isso menos perigosas.
A começar por uma ameaça que paira sobre as receitas do próprio Google. Se as empresas atualmente pagam para que os links patrocinados apareçam com prioridade no topo dos resultados das buscas, os resumos gerados pelo AI Overview é que estarão em destaque, relegando a segundo plano os anúncios que representam uma importante fonte de receita. Resta saber se os investimento do Google em IA resultarão em ganhos proporcionais.
Em âmbito mais geral, o AI Overview desafia o modelo de internet que conhecemos, baseado no tráfego de usuários redirecionados pelo Google para os sites de jornais, blog e demais criadores de conteúdos. Esse tráfego está em risco, já que o AI Overview extrai informações dos sites e produz respostas por conta própria, restando que os usuários cliquem nos trechos do resumo para que vejam de quais sites foram extraídos.
Mesmo antes do lançamento do AI Overview, a empresa de pesquisa tecnológica Gartner já previa que o tráfego proveniente de motores de busca cairia 25% até 2026. Sem acessos, muitos desses sites estarão sem receitas e sob risco de simplesmente deixarem de funcionar.
O desaparecimento desses sites produz, como outro lado da mesma moeda, o empobrecimento da internet e das próprias IAs. O regozijo com as respostas fornecidas pelo ChatGPT e afins obscurece que tamanha potência não dependeu apenas de extraordinários avanços técnicos (como técnicas de machine learning ou hardwares para o processamento de dados), mas especialmente da grande quantidade de dados de qualidade disponíveis na web para o treinamento dos modelos. Tá aí o nó da questão: o AI Overview facilita que as pessoas encontrem respostas, ao mesmo tempo que expulsa as pessoas e veículos que produzem as informações de qualidade em que se baseiam tais respostas.
A eventual redução do conteúdo gerado por humanos, jornais e blogs corrobora ainda mais a “teoria da internet morta”, segundo a qual a web será dominada por conteúdos produzidos por IAs. Em artigo recente, cientistas das universidades de Stanford e Rice analisaram modelos de IA treinados com conteúdos gerados por IA, e concluíram que “sem dados reais atualizados o suficiente em cada geração de um loop de treinamento, os futuros modelos generativos estão fadados a ter sua qualidade (precisão) ou diversidade diminuindo progressivamente”.
Para que a destruição seja “criativa”, como dizia Joseph Schumpeter, é preciso que a tecnologia recém-criada destrua as estabelecidas, ao mesmo tempo que crie uma nova e melhor. É isso que ainda está por ser decidido.