A equação de Bolsonaro diante do vírus

Rodrigo de Abreu Pinto
3 min readApr 15, 2020

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Pode parecer paradoxal, mas a pandemia é transparente em suas exigências aos chefes de Estado. A própria natureza do fenômeno dita o modo de ação, ao mesmo tempo que população, mídia e instituições tendem a uma união nacional. O caso da Argentina é didático: após anos de caos institucional, os argentinos estão reunidos em torno de Alberto Fernández contra o vírus.

Se é assim, Bolsonaro precisaria tão somente governar, o que significa conduzir políticas convergentes e um programa minimamente orgânico. Sendo que a mobilização permanente dos seus apoiadores depende do oposto: acusar constantemente os que não deixam o presidente governar.

Resta-lhe o papel de quem aponta o dedo e grita contra os vilões da nação. Mas agora que a pandemia se revelou uma chaga mais grave que a “velha política”, o presidente tem se esforçado em atitudes apenas comparáveis aos líderes da Bielorrússia, Turcomenistão e Nicarágua no enfrentamento ao vírus, segundo avaliação da The Economist.

Metaesquema (1957) de Helio Oiticica.

O que deve ser notado é que Bolsonaro jamais estressou o sistema a ponto de travá-lo. Mesmo que aos trancos e barrancos, o Legislativo não deixou de apreciar os projetos do Executivo, nem o presidente emperrou quando derrubaram seus vetos. Há uma gestão contínua dos limites em que o presidente, na hora H, tira o pé e previne a paralisia decisória que aceleraria a derrocada.

Diante da pandemia, Bolsonaro ataca o isolamento, mas não a torna impossível. Seu twitter é a prova dessa dinâmica em que alterna entre críticas à quarentena e as ações contra o COVID.

Por um lado, o presidente terceiriza a tarefa de governar para Maia, Guedes, Mandetta, Braga Netto e cia (o que permite que o governo funcione, embora o desempenho seja arruinado pela falta de um centro funcional de decisões). Por outro, ocupa-se em frequentar espaços públicos onde interage com os fãs, além de disparar as ofensas habituais.

Foi assim que fez algo que ninguém imaginava possível: devolveu a dignidade aos políticos. Não devemos estranhar que esses silenciem sobre o afastamento do presidente, afinal, melhor um Bolsonaro sangrando que morto.

O ex-capitão pode ser um idiota, mas se entende uma coisa é de eleição. É provável que enxergue como o sonho presidencial dos principais atores — Dória, Witzel, Maia, Lula, Dino — desestimula uma grande coalizão nacional. E enquanto não surge um oponente capaz, fidelizar um terço do eleitorado é suficiente.

Na Itália, ao longo da pandemia, o primeiro-ministro Giuseppe Conte aparece pouco, reservando poderes e holofotes aos profissionais da saúde, o que tem lhe rendido ganhos de popularidade. Segundo a lógica bolsonarista, isso é inconcebível: o presidente só governa para 1/3, e o nível de fidelidade dessa é diretamente proporcional aos ataques contínuos contra os outros 2/3.

Em meio aos panelaços diários, Bolsonaro estaria perdendo uma parte desses apoiadores? É certo que o ex-capitão sempre agiu de modo predatório, mas suas agressões eram dirigidas a grupos específicos (políticos, esquerdas, minorias). O perigo do vírus, ao contrário, diz respeito a toda sociedade, o que tem assustado sobretudo a classe média.

Em contrapartida, ao criticar o isolamento e discutir fome e desemprego em seus últimos pronunciamentos, Bolsonaro espera não apenas se eximir do colapso econômico. Mais do que isso, almeja o crédito pelo programa de renda básica emergencial, que representa “a virtual erradicação da extrema pobreza enquanto durar”, como lembrou Pedro Nery.

Se for mesmo o caso, o presidente estaria se voltando ao eleitorado mais humilde, localizado em regiões pobres e em sua maioria petista, que compensaria a perda de parte da sua base de apoio original. Em alguma medida, isso significaria o deslocamento, ao menos provisório, da base social do presidente em direção a grupos sociais mais vulneráveis.

O que será decisivo para qualquer pretensão presidencial é o avanço do Corona. Se, ainda hoje, tem trabalhador que afirma ter mais medo de morrer de fome que de doença, esse discurso deve mudar caso a pandemia alcance os mesmos níveis de países como Itália e Estados Unidos — o que é bem provável.

O presidente conseguirá, como sempre fez a ditadura e a polícia militar, esconder os corpos? Vai se aproveitar da subnotificação para fazer propaganda enganosa? Será suficiente dizer que tentou o isolamento como prescreveram os especialistas?

A esquerda — e as demais forças democráticas — devem estar prontas para responsabilizar o presidente pela catástrofe causada pelo seu (des)governo divisionista e inconsequente.

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Rodrigo de Abreu Pinto
Rodrigo de Abreu Pinto

Written by Rodrigo de Abreu Pinto

Advogado (PUC-Rio) e Filósofo (FFLCH-USP). Diretor de Inovação da Câmara de Comércio Brasil-Portugal.

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