A gênese histórica do valor mobiliário no direito brasileiro
A Lei 6.385 de 1976, também conhecida como Lei do Mercado de Capitais, redesenhou o sistema financeiro brasileiro da seguinte maneira: os negócios com valores mobiliários se tornariam de competência exclusiva da Comissão de Valores Mobiliários (CVM); e os negócios com quaisquer outros ativos financeiros continuariam sob a fiscalização do Banco Central, como firmou a Lei 4.595 de 1964.
A competência dos órgãos da Administração Pública responsáveis pela fiscalização das atividades desenvolvida no mercado financeiro foi dada, dessa maneira, pelo conceito de valores mobiliários.

A antiga Lei do Mercado de Capitais, Lei nº 4.728 de 1965, referiu-se aos valores mobiliários e legislou sobre o acesso a informação, a proteção dos investidores e o combate às irregularidades, mas não chegou a determinar o que, ou quais, seriam os valores mobiliários. “Isso não chegou a ser um problema grave, pois o mercado incipiente e a regulação, então realizada pelo Banco Central, pôde ser insuficiente, sem causar maiores prejuízos”, observou bem Julian Chediak.
Só na década seguinte, coube à Lei 6.385 enumerar detalhadamente os valores mobiliários que estariam, a partir de então, sujeitos às normas e fiscalização da CVM.
A inteligência dos legisladores foi que, por um lado, estabeleceram uma ampla gama de valores mobiliários, oferecendo segurança jurídica para as empresas ainda pouco acostumadas com as diversas possibilidades ao financiamento das suas atividades via mercado de capitais.
Por outro lado, sabendo da impossibilidade de listar exaustivamente os valores mobiliários, os legisladores se preocuparam em garantir certa flexibilidade ao conferir competência ao Banco Central para alterar a lista.
O desenvolvimento acelerado do mercado brasileiro a partir dos anos 90, em especial pela acomodação das condições macroeconômicas do país, acelerou o surgimento de novos produtos de investimento. Em tal contexto, o sistema originado pela Lei 6.385 se revelou ineficiente já que “faltava competência formal à CVM para regular os certificados de investimento, e o Banco Central negava-se a utilizar tal competência difusa a ele atribuída em 1965”, como viu bem Ary Oswaldo Mattos Filho.
O resultado desse desencontro foi a explosão de casos como da Fazenda Reunidas Boi Gordo que geraram perdas e ameaçaram a confiança que o mercado brasileiro, enfim, estava recuperando após a crise inflacionária e eventos como a quebra da Bolsa do Rio de Janeiro no final dos anos oitenta.
Daí a importância da edição Medida Provisória 1.637/1998 pelo governo FHC que alargou o conceito de valores mobiliário visando a inclusão dos chamados contratos de investimento coletivo. Tal como lemos na Exposição de Motivos:
“Os mercados financeiros e de capitais, devido a seu dinamismo, apresentam incessantes inovações, exigindo das autoridades governamentais a criação ou o aperfeiçoamento tempestivo de instrumentos regulatórios. É o caso recente dos contratos de investimentos relativos á criação ou à engorda de animais”.
Com a mudança, veja-se como ficou o artigo 2º da Lei do Mercado de Capitais:
Art. 2º São valores mobiliários sujeitos ao regime desta Lei:
I — as ações, debêntures e bônus de subscrição;
II — os cupons, direitos, recibos de subscrição e certificados de desdobramento relativos aos valores mobiliários referidos no inciso II;
III — os certificados de depósito de valores mobiliários;
IV — as cédulas de debêntures;
V — as cotas de fundos de investimento em valores mobiliários ou de clubes de investimento em quaisquer ativos;
VI — as notas comerciais;
VII — os contratos futuros, de opções e outros derivativos, cujos ativos subjacentes sejam valores mobiliários;
VIII — outros contratos derivativos, independentemente dos ativos subjacentes; e
IX — quando ofertados publicamente, quaisquer outros títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros.
Ao contrário dos demais, o inciso IX é propositadamente flexível. Os incisos I ao VIII listam um rol taxativo de valores mobiliários, enquanto o inciso IX é aberto.
O que caracteriza tal flexibilidade e abertura é que o contrato de investimento coletivo representa, no limite, a substância econômica que nos demais valores mobiliários se encontra encapsulada pela forma jurídica (ação, debênture, nota comercial, derivativos, etc). Em outras palavras: todos os valores mobiliários do inciso I ao VIII se identificam, à sua maneira, com a substância econômica subjacente a definição de “contrato de investimento coletivo”.
A conceituação dos contratos de investimento coletivose deu inicialmente nos Estados Unidos — mais especificamente no caso SEC v. W. J. Howey Co (1946) — ocasião em que Suprema Corte se viu premida pela necessidade concreta de aplicação do texto da lei (em que já constava os investiment contracts na lista de valores mobiliários) diante da oferta de lotes de terras a serem cultivadas pelo emissor em benefício dos investidores adquirentes dos lotes.
À Suprema Corte cabia decidir se o esquema caracterizava, ou não, um contrato de investimento coletivo a ser tratado como um valor mobiliário.
Os juízes então aplicaram, pela primeira vez, o chamado Howey Test que determina a caracterização do investiment contract caso se encontrem reunidos os seguintes elementos: (i) investimento em dinheiro; (ii) empreendimento comum; (iii) expectativa de remuneração; (iv) êxito dependente de esforços de terceiros.
Luiz Gastão Paes de Barros Leães reforça que os juízes “procuraram trabalhar num denominador comum aos vários exemplos enumerados no texto legal, e que, por via de consequência, fornecesse os “elementos essenciais” do conceito em tela”. Agindo assim, conclui Leães, “construiu-se uma interpretação longa em torno da expressão investment contract, que consta do texto de lei e que explicaria o significado do vocábulo security [valor mobiliário]”.
Olhando retrospectivamente, pode-se dizer que a conceituação dos investment contracts espraiou, naquele momento, efeitos voltados ao passado, bem como ao futuro. No primeiro sentido, assegurou o reconhecimento de determinadas modalidades de títulos ou contratos que não eram, até então, reconhecidos como valores mobiliários. No segundo sentido, a decisão do SEC v. W. J. Howey Co preparou o órgão regulador para tutelar os novos valores mobiliários que surgiriam a partir de então pois, como frisou o então diretor Marcos Barbosa Pinto em julgado da CVM, “a Suprema Corte decidiu adotar um princípio flexível e não estático, capaz de se adaptar aos variáveis e incontáveis arranjos criados por aqueles que captam dinheiro de terceiros”.
A influência da decisão da Suprema Corte no SEC v. W. J. Howey Co para a inclusão dos contratos de investimento coletivo na lei brasileira é notória, basta notar que a própria redação do inciso IX do art. 2º da Lei 6.385 se confunde com os elementos listados pela corte americana.
Também no caso brasileiro, a expansão da competência da CVM sobre valores mobiliários que até então não estavam sob a sua égide assegurou mais segurança ao público investidor. A CVM se tornaria mais adaptada a cumprir os objetivos da regulação financeira de modo mais harmonizado e integral, em especial no cenário de crescente complexificação dos produtos financeiros.
Pode-se dizer, afinal, que o conceito de “investimento coletivo” serviu adequadamente aos dois principais propósitos da CVM: (i) a proteção dos interesses do público investidor em geral e (ii) a promoção do desenvolvimento do mercado de valores mobiliários.
(i) Quanto a proteção dos investidores, a definição genérica de valor mobiliário garantiu maior autonomia à CVM que já não dependia de modificação legislativa a cada vez que surgisse um produto novo, salvaguardando, em última instância, o próprio investidor que não ficaria sem a proteção do regime adequado.
Em outras palavras: a tipicidade aberta do conceito de valores mobiliários permitiu que a CVM se adequasse a respectiva estrutura do mercado à medida que esse progrediu, sem que cada inovação financeira resultasse em enormes custos de transação e agência para enquadrá-los nas suas categorias regulatórias.
O trabalho da Autarquia foi funcionalizado pelo conceito de contratos de investimentos coletivo cuja flexibilidade permitiu à CVM guardar correspondência com a estrutura do mercado vigente, já que “por meio desta abordagem é possível englobar instrumentos ou arranjos mais complexos que apresentam certas dificuldades para serem identificados à primeira vista como valores mobiliários”, como destacaram Gabriela Cordoniz, Laura Patella e Marina Copola
(ii) Quanto a promoção do desenvolvimento do mercado de valores mobiliários, em especial da perspectiva dos emissores, a definição genérica de valores mobiliários assegurou que os emissores não estariam obrigados a utilizarem compulsoriamente as estruturas dos valores mobiliários listados para acessarem o mercado de capitais.
A definição aberta despiu a norma de inflexibilidade e rigidez, em sintonia com a constatação óbvia de que não existe um modelo único de valor mobiliário capaz de servir adequadamente às necessidades dos diversos emissores, aos quais devemos a contínua expansão do o cardápio de oportunidades e produtos financeiros à disposição dos investidores.
Se o inciso do I ao VIII fixa uma lista de valores mobiliários que fornece o mínimo de previsibilidade ao sistema, o inciso X alarga a competência da CVM para os ativos continuamente engendrados pela imaginação humana.
Dentre os ativos que não estão enumerados no art. 2º, mas cuja caracterização como valores mobiliários advém do inciso IX, destacamos: (a) cotas de fundos imobiliários; (b) certificados de investimento audiovisuais; (iii) certificados representativos de contratos de compra e venda a termo de energia elétrica; (iv) certificados de recebíveis imobiliários (CRI); (v) certificados de recebíveis do agronegócio (CRA); (vi) letras financeiras.

Atualmente, as principais discussões giram em torno da caracterização das criptomoedas e tokens como valores mobiliários.
O Howey Test ensina que o conceito de contrato de investimento coletivo é instrumental e baseado na essência econômica dos produtos ofertados ao público, e é assim que a CVM tem feito em processos recentes (ver, por exemplo, o excelente voto do ex-Diretor Gustavo Gonzalez no julgamento sobre a oferta de criptomoedas da Iconic).
O sacrifício do atual conceito de valores mobiliários, ao menos por enquanto, não se mostrou necessário ao propósito de facilitar o acesso e surgimentos dos criptoativos. A história, portanto, continua.