A introdução do voto plural no Brasil

Rodrigo de Abreu Pinto
7 min readDec 22, 2021

Escrito em colaboração com Gabriel Barenco

A Lei 14.195, de 26 de agosto de 2021, estabeleceu a autorização para o chamado voto plural nas sociedades anônimas. O mecanismo até então vedado pela legislação societária permite às companhias manterem uma ou mais classes de ações ordinárias com poder de voto multiplicado.

Sem Título (1987) de Cildo Meireles

A novidade é produto de uma emenda do Congresso à Media Provisória 1.040, que seria convertida na Lei 14.195. Conforme consta da Justificação da Emenda do Deputado Marco Bertaiolli (PSD-SP), a permissão ao voto plural visa “facilitar a abertura de capital de empresas (…) por meio de procedimentos como o IPO; gerar atratividade para o ambiente de negócios brasileiro; e aumentar sobremaneira o potencial de financiamento dos empreendimentos no país.”

O voto plural vai de encontro aos padrões de governança que prevaleceram no Brasil ao longo das últimas duas décadas, conforme estabelecidos no começo dos anos 2000 para fomentar a confiança dos acionistas no mercado de capitais ainda em estágio incipiente. O objetivo, inclusive em termos de competir com mercados externos, se pautava pela consolidação de um arcabouço jurídico-regulatório destinado a tutelar a proteção dos investidores.

Foi assim que os direitos dos acionistas individuais e minoritários foram substancializados e a confiança dos brasileiros no mercado, enfim, retomada, após o crash da Bolsa do Rio de Janeiro nos anos 80, escândalos como das Fazendas Boi Gordo nos anos 90, além de casos de abusos de controladores em detrimento de acionistas minoritários ao longo da crise econômica nas últimas duas décadas do século XX.

Dentre os princípios de governança consagrados, incluía-se o princípio de “uma ação, um voto”, expresso na criação do segmento do Novo Mercado (2000) da B3 que vedava ações sem direito a voto, na Lei 10.303 (2001) que limitou a emissão de ações preferenciais de 2/3 para 1/3 das ações das companhias e nas prescrições do Código de Melhores Práticas de Governança Corporativa do IBGC (1999).

Em tal contexto, o voto plural era avaliado negativamente pela dissociação entre poder político e participação no capital social. Imaginava-se que o acionista controlador, ao deter o controle sem correspondência com a participação pecuniária no capital social da companhia, não carregaria o ônus das próprias decisões, criando desincentivos a monitorar e fiscalizar o desempenho da empresa.

De lá para cá, o mercado brasileiro e mundial passaram por transformações que impactaram as leituras sobre o direito de voto e o equilíbrio entre poder político e poder econômico nas companhias.

No mercado americano, a recente ascensão de investidores institucionais engendrou o fenômeno da concentração acionária em detrimento da elevada dispersão que historicamente definiu o mercado mais avançado do mundo, colocando em questão a noção de capital pulverizado como sinônimo de estágio de governança corporativa que até então se tinha.

Em paralelo, o mercado mundial se deparou com o fenômeno da repersonalização da economia, ligado a ascensão de empresas fortemente vinculadas ao gênio inventivo dos seus criadores, como o Facebook de Marc Zuckerberg e a Alphabet da dupla Larry Page e Sergey Brin, ambas companhias que adotam a classe de ações com voto plural.

Por fim, acirrou-se a competição das bolsas de valores em relação as outros canais alternativos de captação, como os fundos de private equity que passaram a financiar empresas, inclusive de menor porte, sem a necessidade de que as companhias beneficiadas incorram nos custos de listagem ou de adoção da forma da sociedade por ações.

À vista dessas transformações, as ações com voto plural ganharam destaque porque conferem flexibilidade às companhias, em termos da pluralidade de formas de organização dos sócios, contemplando as necessidades das empresas em suas diversas modalidades e estágios de evolução.

Por um lado, as ações com voto plural permitem que os fundadores de uma companhia mantenham o controle do negócio mesmo após sucessivas diluições e aumentos de capital, servindo como atrativo para as companhias que não abrem o capital para evitar a perda de controle dos fundadores.

Por outro lado, manter a vedação às ações com voto plural ignora o fato de que há investidores que preferem investir em companhias com a segurança de que o comando estará preservado nas mãos dos controladores, a exemplo do que temos visto em startups e companhias de tecnologia.

Tais transformações induziram uma mudança estratégica nos negócios globais em torno da flexibilização da regra do voto plural, a exemplo da adoção recente do instrumento pelo ordenamento de países como Argentina, Inglaterra, Japão, Holanda, Finlândia, França e Itália. Num mundo em que a globalização intensificou o fluxo de capitais e ele já não encontra limites nas barreiras territoriais impostas pelas fronteiras entre os países, a adoção do voto plural se tornou um capítulo importante da competição entre as bolsas ao redor do mundo por novas emissões, mais recursos e novos investidores.

No mercado brasileiro, a pressão pelo aumento da competitividade vem na esteira das empresas brasileiras que listaram suas ações em bolsas estrangeiras e apontaram, como uma das razões, a possibilidade de adoção do voto plural, como XP, Stone, PagSeguro e Arco Educação.

Dessa forma, o desafio ao crescimento do mercado de capitais brasileiro se afigura diferente daquele da virada do século. O mercado se desenvolveu, a CVM e a B3 se capacitaram, os veículos de imprensa que cobrem o mercado de capitais multiplicaram e, em especial, os investidores brasileiros adquiriram confiança no mercado do seu país (em 2001, eram cerca de 100 mil; atualmente, são cerca de 4 milhões de pessoas físicas cadastradas na B3).

O pêndulo se deslocou e, hoje, os desafios ao crescimento passam pela facilitação ao acesso, a simplificação regulatória e afastamento de barreiras desnecessárias e custosas, dentre as quais a vedação ao voto plural. Nas palavras de André Pitta, “de nada adianta que o regime jurídico, em um dos polos da relação de investimento, busque tutelar os poupadores-investidores, se descuidar de estabelecer incentivos e mecanismos eficientes em relação às empresas-tomadoras que necessitam de recursos para o desenvolvimento da atividade de produção de bens e serviços”.

Envolvida em tal contexto, a permissão às ações com voto plural pela Lei 14.195 visou estimular a atratividade do mercado de capitais brasileiro e aumentar a competitividade em face dos seus concorrentes estrangeiro.

Mas se a permissão ao voto plural abre espaço para uma plasticidade que não avistávamos por aqui, não é menos certo que a lei ergueu restrições que poderiam ter sido deixadas às regras de listagem da bolsa ou aos próprios estatutos das companhias. Ao legislador, afinal, embora lhe caiba minimizar os riscos de abusos contra os acionistas e o mercado em geral, deve fazê-lo sem desfigurar os instrumentos de suas virtudes.

Nesse sentido, o legislador acertou ao deliberar que a criação de ações com voto plural depende do voto favorável de acionistas que representem metade do total de votos conferidos pelas ações com direito a voto, e também da maioria absoluta das ações preferenciais sem direito a voto ou com voto restrito.

O mesmo vale para a adoção da limitação temporal para a vigência do direito de voto plural pelo prazo de sete anos (a chamada sunset clause), em especial porque incluiu a possibilidade do voto plural ser prorrogável por qualquer prazo mediante deliberação sem o voto dos acionistas beneficiados pelo voto plural.

Ainda, o legislador não fez mal em prever o limite de 10 votos por ação. Embora a mesma limitação não vigore no mercado americano (onde o número de votos por ação chegou a 40 em IPOs recentes), deve-se levar em conta que, no caso brasileiro, o controle acionário pode ser alcançado com participação menor no capital pela combinação entre diversas classes de ações com voto plural e a permissão de emissão simultânea de ações preferenciais.

No entanto, o legislador foi restritivo quando vedou a adoção do voto plural por companhias abertas (e, como forma de evitar a burla a essa vedação, impediu ainda as operações de incorporação, fusão ou cisão em casos que a incorporadora utiliza ações com voto plural). O objetivo da restrição é que os acionistas não sejam forçados a um modelo de alinhamento entre direitos políticos e econômicos diferente daquele que pactuaram ao ingressar na companhia.

Ao mesmo tempo, tal vedação mina, por exemplo, a possibilidade de que companhias abertas com ações preferenciais migrem para uma estrutura apenas com ações votantes. Melhor seria que a transação estive condicionada a aprovação da maioria dos votos dos acionistas não beneficiados, tal como na prorrogação do prazo, cabendo os detentores de ações com voto plural provar que os benefícios compensam os riscos adicionais do instrumento (o que pode incluir, ainda, modificações na composição do conselho e na remuneração dos executivos, por exemplo, para conformar o alinhamento de interesses adequado).

Além disso, outras restrições como a conversão das ações com voto plural em ações sem voto plural em caso de cessão das ações a terceiros, ou em caso da realização de acordo de acionistas com acionistas que não sejam titulares de ações com voto plural, limitam os arranjos entre sócios à luz de suas necessidades individuais, conferindo rigidez e inflexibilidade ao instrumento.

Ainda, o afastamento do voto plural nas votações envolvendo remuneração dos administradores e transações com partes relacionadas engessam às companhias ao obrigar, a cada vez, uma nova negociação entre o controlador e os demais acionistas para deliberar questões recorrentes na vida da sociedade.

Embora se possa interpretar o conjunto de salvaguardas previstas em lei como uma proteção aos abusos no exercício do poder de controle e em situações de conflito de interesses, não é menos verdade que se traduzem numa limitação ao uso do instrumento do voto plural.

A ratio do legislador, sobretudo ao limitar o uso pelas empresas já listadas em bolsa, parece ter sido o de privilegiar a concessão do voto plural aos sócios fundadores de startups e empresas em estágio nascente, depois do qual tais empresas já teriam condições de seguir em frente sem o instrumento.

Espera-se que a introdução do mecanismo no ordenamento jurídico nacional seja apenas o primeiro passo, depois do qual virão aperfeiçoamentos futuros que farão do voto plural um instrumento ainda mais transformador às companhias brasileiras.

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Rodrigo de Abreu Pinto

Nascido em Recife, é formado em filosofia pela FFLCH-USP e em direito pela PUC-Rio.