A lírica material e libidinal de Anitta

Rodrigo de Abreu Pinto
5 min readMay 12, 2021

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Aos 27 anos, pode-se dizer que Anitta já entrou para a mitologia da cultura de massa como uma das maiores artistas do pop brasileiro. Valendo-se do seu carisma identificatório com as classes populares, tornou-se símbolo do Brasil pós-Lula marcado pela reprodução do capital através da universalização do consumo. No momento em que esse mesmo Brasil entrou em crise, Anitta decolou sua carreira internacional e atualmente 7 das suas 10 músicas mais ouvidas do Spotify são em inglês ou espanhol. Isso mostra não apenas sua habilidade linguística, mas sobretudo a ascensão de alguém que soube interpretar a migração definitiva da indústria musical para a internet, o fim da organização sequencial das faixas (Anitta não lança álbuns, mas sequências de singles) e a autonomia recém-conquistada dos videosclipes.

A sua mais nova música, Girl From Rio, parte da melodia de Garota de Ipanema para então torná-la um sample e retraduzí-la nas tramas e batidas eletrônicas do funk. Anitta, aqui, não usa o popular como tema, mas como o ponto de partida metodológico para reler a história, inverter funções. O beat eletrônico, ao contrário do requinte da bossa, reforça a positividade do acesso, da partilha, da potência multiplicada pelos canais da internet onde os hits rapidamente se alastram.

Durante a cerimônia de abertura das Olimpíadas do Rio de Janeiro em 2016, Garota de Ipanema foi interpretada por Daniel Jobim, neto de Tom, enquanto a modelo Gisele Bündchen desfilava como a encarnação mesma da Garota, embora seja gaúcha. Naquela mesma ocasião, Anitta foi escalada para cantar Isso Aqui, O Que É?, samba de Ary Barroso, ao lado de Caetano e Gil. Se a beleza menos europeia de Anitta não é a primeira que vem à mente quando pensamos na suposta Garota de Ipanema, o clipe de Girl From Rio promove a fricção entre essas matérias divergentes na própria carne da imagem: a paleta de cores equilibrada, a dramaturgia ensaiada e a cenografia da Broadway são sobrepostas pelas imagens alaranjadas e incômodas do Piscinão de Ramos.

A coletividade apresentada em Girl From Rio parece reunir todas as figuras míticas do imaginário de Paulo Guedes: o filho de porteiro que tira zero, a empregada que viaja para Disney, o filho desajustado da mãe solteira que recebe Bolsa Família, etc. Uma vez reunidos, alimentam a fantasia de um corpo social harmônico, e nem por isso menos permeado de signos que se deslocam anarquicamente entre um imaginário conservador (a família brasileira) e uma economia libidinal indefinida (os corpos seminus e bronzeados). Por mais que se diga que Anitta está interessada na representação do “povo ”, a polimorfia daqueles corpos não se adequa ao conceito normativo de cultura popular, assim como a combinação entre a música em inglês e o Piscinão de Ramos extrapola os significantes. O popular, aqui, não é uma raça ou uma classe, mas um agenciamento de signos.

Numa era em que a indústria cultural incita a reconfiguração contínua e a construção performativa de identidades — seja através de dietas, cosméticos, ou cirurgias plásticas — as representações de Anitta sugerem, em lugar disso, uma reconfiguração plástica de baixo custo. Em Girl From Rio, mas também em seu clipe anterior Vai Malandra, a transformação dos regimes de imagens ideais do corpo fazem desse um espaço de afirmação da multiplicidade: o corpo gordo, a celulite, o bronze, a língua, o artifício, o protagonismo feminino. É o corpo sexualizado na era da sua ressignificação pelas próprias mulheres, como denominou Ivana Bentes, “porque a bunda viva de Anitta com sua celulite sem photoshop é sujeito e não objeto”. Um proposta estética que tem ares de programa quando verificamos os paralelos nas mulheres do funk (MC Carol, Deize Tigrona), do rap (Nega Gizza, Linn da Quebrada) e até do sertanejo, como o feminejo de Marília Mendonça e Simone & Simaria que refunda arquétipos femininos com a esposa que exorta o marido controlador ou a mulher que se relaciona com interessa puramente sexual, e ainda assim goza.

É claro que se pode dizer que o funk de Anitta é comercial, é falso, é isso ou aquilo. Mas uma certa pasteurização também ocorreu com o blues que se tornou rock and roll, o old school que virou disco, em suma, com o underground que ascendeu ao mainstream. Em lugar de importar uma noção tosca e maniqueísta da luta de classes para o campo da cultura, a obra de Anitta nos força a pensar a indústria cultural como portadora de contradições que não se apartam, ao menos não inteiramente, do contexto social em que está inserida. É lógico que, como uma manifestação de massa, a arte de Anitta se justifica, antes de tudo, como mercado, mas esse é apenas o ponto de partida. Se uma arte não é necessariamente contra o mercado, ao menos pode (e deve) ser a partir dele. Como escreveu Stuart Hall, “a cultura popular negra tem permitido trazer à tona, até nas modalidades mistas e contraditórias da cultura popular mainstream, elementos de um discurso que é diferente ‒ outras formas de vida, outras tradições de representação”.

Não se trata, com isso, de dizer que Anitta “politizou” o pop, nem mesmo que sua estética revela a condição material do país (como a revolta lírica do rap de Criollo ou Emicida), mas que a trajetória de artistas como ela, Ludmilla e KondZilla tem revelado que o sucesso comercial não pressupõe que os artistas abdiquem da suas origens, da fidelidade a si mesmos ou de conteúdos explicitamente políticos. É provável que assim não sejam convidados para a Ilha de Caras, mas jamais deixaram de sê-lo para as suas próprias comunidades.

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Rodrigo de Abreu Pinto
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Written by Rodrigo de Abreu Pinto

Advogado (PUC-Rio) e Filósofo (FFLCH-USP). Diretor de Inovação da Câmara de Comércio Brasil-Portugal.

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