A mudança no Teto de Gastos envolve mais que matemática simples

Rodrigo de Abreu Pinto
4 min readSep 10, 2019

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Em momento de rara sanidade, Bolsonaro foi enfático ao justificar a revisão do Teto de Gastos dizendo: “Isso é uma questão de matemática”.

A regra fiscal, firmada pelo governo Temer em 2016, limitou o crescimento das despesas a inflação do ano anterior. Desde então, as despesas obrigatórias (salários, aposentadorias, transferências constitucionais) cresceram mais rápido que a inflação, o que então exige que o outro tipo de gasto, as chamadas despesas discricionárias (investimentos e custeio administrativo), sejam drasticamente reduzidas para que o dispêndio total não ultrapasse o limite do Teto.

De modo mais exato: em 2020, o governo poderá gastar R$ 1,48 trilhão, do qual 94% são despesas obrigatórias. Para o resto das despesas, ligadas a rotina administrativa do governo, restarão apenas R$ 90 bilhões. Tomando 2019 como referência, o montante atualmente destinado a tais gastos é de R$ 108 bilhões, já incluídos os cortes.

Com efeito, se o governo já está funcionando mal (vide os problemas com bolsas de pesquisa, emissão de passaportes e provisão dos quartéis), será possível reduzi-los ainda mais? Segundo os economistas do IBRE/FGV, a máquina pública precisa de pelo menos R$ 120 bilhões para funcionar sem risco de shutdown. E é dessa matemática que o Bolsonaro estava falando.

Contra a modificação do Teto, a equipe econômica repete que o problema é o crescimento das despesas obrigatórias, e não o limite de gastos. Assim, o único remédio seriam reformas que desvinculassem o orçamento da União e/ou reduzissem o salário dos servidores, por exemplo, para que os dispêndios compulsórios então desacelerassem. Neste sentido, Paulo Guedes rapidamente repreendeu a declaração de Bolsonaro. Afinal, na visão do ministro, a manutenção do Teto de Gastos é essencial pois é a constrição fiscal que tem coagido o “reformismo” dos parlamentares.

Embora mal desenhado, o Teto de Gastos foi eficaz em controlar a inflação e assegurar a solvência da dívida pública, o que permitiu a redução da taxa de juros a níveis historicamente baixos. Ainda assim, o encolhimento do Estado e a redução da Selic não foram suficientes para impulsionar os gastos privados (consumo e investimento), que se mantiveram em níveis muito aquém do necessário para aquecer o mercado de trabalho. Isso, junto a contínua retração dos gastos públicos, explica a insuficiência de demanda que tem comprometido o crescimento.

Caso contrário, se a economia estivesse bem e o único problema fosse o aumento contínuo das despesas obrigatórias, a manutenção do Teto de Gastos não seria de todo ruim. Quero dizer: a regra fiscal explicitaria os dilemas orçamentários, prestando-se a acelerar as reformas e encaminhar a consolidação institucional das contas públicas — muito embora, que fique claro, as reformas que defendo não sejam exatamente iguais às do ministro Paulo Guedes.

Atualmente, o problema não é só que o Teto pode ser desrespeitado em 2020, mas que o Estado está gastando menos do que deveria. Mesmo que realizemos as reformas em tempo recorde, o espaço liberado, ao menos no curto prazo, será insuficiente para recompor o dia-dia administrativo e, adicionalmente, incorporar novos investimentos que aproveitem a capacidade ociosa dos fatores de produção (mão de obra e equipamentos parados) para sem pressionar a inflação. A questão, portanto, envolve mais que matemática simples.

Contra a flexibilização do Teto de Gastos, a equipe econômica insiste que a mudança estimularia a expansão dos gastos correntes. Porém, a proposta enviada pelo senador Jacques Wagner (PT-BA) deixa claro que somente as despesas de investimentos poderiam ultrapassar o Teto, e no valor máximo de 1,5% do PIB.

No mais, afirmou-se ainda que novos dispêndios exigiriam, em contrapartida, o aumento da dívida pública ou dos impostos. No entanto, seria possível condicionar a liberação dos gastos ao ingresso de receitas extraordinárias, tais quais os ganhos provenientes das privatizações, dos dividendos de empresas estatais e dos leilões da cessão onerosa do petróleo, além do possível uso das reservas internacionais excedentes. Várias dessas propostas foram defendidas ao longo do ano por diferentes economistas, mas esbarram na regra atual do Teto de Gastos que não aumenta o limite mesmo após o ingresso de novas receitas.

É certo que as políticas de estímulo do governo Dilma foram desastrosas, a ponto de minar boa parte do espaço fiscal que permitiria, ainda hoje, a realização de políticas anti-cíclicas com menos restrições. Por outro, se a política de austeridade, bem representada pelo Teto de Gastos, coibiu o descontrole orçamentário, não é menos certo que agora está matando a economia de abstinência.

Quando a política monetária e o resgate da confiança são incapazes de recuperar o emprego e a demanda, é sinal de que, em algum momento, o impulso fiscal será inevitável. Melhor que seja logo.

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Rodrigo de Abreu Pinto
Rodrigo de Abreu Pinto

Written by Rodrigo de Abreu Pinto

Advogado (PUC-Rio) e Filósofo (FFLCH-USP). Diretor de Inovação da Câmara de Comércio Brasil-Portugal.

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