A nova Guerra será ainda mais Fria
Se o fim da Guerra Fria inaugurou o século XXI, a ascensão definitiva dos Estados Unidos como única potência hegemônica a nível global era o dado irrefutável do tempo que se abria. Naquela altura, a Rússia pendia fragilizada e às voltas com a dissolução da União Soviética. A Europa, por sua vez, não questionava a hegemonia norte-americana e parecia à vontade quanto ao papel coadjuvante nas discussões internacionais. A China, ao menos até então, não tinha consciência do potencial econômico que tão logo se revelaria.
O desastre nuclear de Tchernóbil, além de acelerar a derrocada da URSS, deu o tom do novo tempo do mundo em que os humanos se voltariam às catástrofes radioativas, ecológicas e bioquímicas como ameaças muito mais palpáveis do que a guerra entre países. Daí em diante, sem outro lado para culpar ou polarizar, nós foi uma palavra de ordem cada vez mais frequente, sobretudo pelos Estados Unidos que se valeu da prerrogativa de liderança global para justificar boas e más ações em nome da civilização.
Ao contrário das acusações entre americanos e soviéticos em torno da epidemia de HIV nos anos 80, o surto de SARS (2003) e a pandemia do H1N1 (2009) não se traduziram em disputas geopolíticas. Até ali, afinal, a liderança dos Estados Unidos na organização, divulgação e combate às questões mundiais era tida como natural.
Desta vez, ao contrário, as controvérsias entre Estados Unidos e China a respeito da COVID-19 sinalizam outra coisa. Os esperneios de Donald Trump contra o “vírus chinês” não é mero diversionismo, mas sinal de alguém prestes a perder, além da próxima eleição, a hegemonia.
Assim como o presidente americano tem atacado a China pela sonegação de normas comerciais e produção de armas de destruição em massa, o vírus é o novo capítulo dessa história que a pandemia cuidou de radicalizar.
O abandono das convenções multilateralistas por Trump — estampada na insígnia do America First — inspirou-se na tese de que a invasão de produtos chineses teria sido a principal causa da desindustrialização do país mais rico do mundo. O presidente acusou os últimos oito presidentes dos Estados Unidos — de Nixon a Obama — por advogarem privilégios aos chineses (como a entrada no Conselho de Segurança da ONU e as regras especiais na OMC) pois assim diziam que o país oriental se tornaria cada vez mais capitalista e liberal. Em lugar disso, segundo Trump, os chineses se dedicaram ao roubo de segredos comerciais, transferências tecnológicas e manipulações cambiais — as quais, uma vez unidas a oferta abundante de mão-de-obra barata, teriam garantido o crescimento chinês por meio da venda de bens de consumo aos Estados Unidos.
A jogada mais ousada de Trump se deu quando sobretaxou as importações chinesas — em meio ao acirramento da guerra comercial entre os dois países a partir de 2019 — na esperança de que acarretaria dois efeitos interligados: a redução do déficit comercial dos Estados Unidos com a China e a consequente desaceleração do crescimento chinês.
De fato, a guerra comercial contra a China resultou na diminuição da importação de bens chineses em 17,6%. Foi assim que, pela primeira vez desde 2013, o déficit comercial dos Estados Unidos caiu 2,4% — resultado que só não foi melhor porque cresceram as importações de bens do Canadá, México e Europa.
Não dá para dizer que a China não sofreu, afinal, tivera o menor crescimento do PIB em 29 anos (6,1%). A questão é que a dificuldade no comércio global, no caso chinês, surte o efeito de acelerar a transição de uma economia baseada na exportação de bens de consumo para uma economia estimulada pelo mercado interno. Isso, por um lado, desacelera o crescimento, mas também incrementa o poder de compra do chinês — a ponto de reduzir o fosso da desigualdade — o que reforça a legitimidade do regime a despeito da manutenção do controle iliberal do PC chinês.
Contando com apoio interno, Xi Jinping não recuou diante das ameaças e imposições comerciais de Trump — inclusive porque o país já passara por algo semelhante na crise de 2008 em que o gasto privado norte-americano caiu vertiginosamente e a China, por sua vez, foi capaz de compensar a perda ao penetrar mais fortemente nas demais economias em desenvolvimento. Para se ter uma ideia, em meio a guerra comercial do ano passado, os Estados Unidos solicitou que 61 países proibissem a participação da chinesa Huawei na construção da rede 5G em seus países, e somente três países atenderam ao pedido (Austrália, Japão e Nova Zelândia).
Nas palavras do economista Branko Milanović (autor do recém-lançado Capitalismo Sem Rivais) estamos diante do momento Sputnik: assim como os americanos só se deram conta que a União Soviética era uma verdadeira potência quando lançaram o Sputnik, o embate entre Trump e os Xi Jinping provou de modo definitivo, tanto aos democratas quanto aos republicano, que a China é uma potência hegemônica ipsis litteris.
Embora o mundo estivesse adentrando uma nova era bipolar, muitos analistas diziam que ainda faltava a China a mesma ambição geopolítica outrora desempenhada pela URSS. Dito de outro modo: por mais já disputasse a dianteira na produção de celulares, robótica, carros elétricos e energias renováveis, a postura acanhada da China, em termos de política externa, não estaria à altura.
Por outro lado, nos últimos anos, vimos o gigante oriental se envolvendo em ações de manutenção da paz e de provisão de infraestrutura global (a nova Rota da Seda), além de usar os palanques dos órgãos multilaterais para enaltecer uma visão cooperativa da ordem internacional. Nas palavras de Branko Milanović, “pode-se até mesmo afirmar que, pela primeira vez em sua história, a China participou da discreta e bem-sucedida derrubada de um governo estrangeiro ao arquitetar a saída do poder de Robert Mugabe no Zimbábue em 2017”.
Enquanto, na luta contra Ebola em 2014, a China teve um papel importante, mas apenas coadjuvante em relação aos Estados Unidos, desta vez encarnaram o combate contra a COVID-19 com óbvias intenções de liderança. Após o lobby chinês ter garantido a escolha do etíope Tedros Adhanom para a chefia da OMS, o país rapidamente implantou a chamada Rota da Seda Sanitária para a provisão global de materiais médicos e sanitários — um gesto que ficou conhecido como a diplomacia da máscara (em referência às máscaras de proteção distribuídas).
Por mais que a pandemia tenha eclodido inicialmente em Wuhan, os efeitos recessivos no Estados Unidos será mais severo que na própria China — o que deve reforçar ainda mais, a tendência de deslocamento do eixo econômico global para Ásia. Para 2020, o FMI prevê que o PIB dos EUA irá recuar -5,9% enquanto a China terá um discreto crescimento de 1,2%.
É certo que a pandemia, ao reforçar o papel do Estado na coletivização dos riscos sociais, induzirá que vários países ocidentais assumam práticas semelhante às chinesas quanto a gastos públicos, incentivos comerciais e join-ventures entre empresas privadas e estatais. Mais do que isso, no entanto, a persistência do crescimento chinês desperta outra questão: se também o modelo político iliberal do capitalismo chinês será tomado como alternativa ao capitalismo liberal dos Estados Unidos.
O sucesso chinês, a depender do olhar, poderá ser traduzido como a constatação de que não apenas é possível capitalismo sem democracia, mas que um sistema político com partido único, alheio ao controle popular e confortável para reprimir os meios de comunicação e as manifestações públicas (como fizeram recentemente em Hong Kong) seria conveniente ao crescimento econômico. O poder arbitrário do Estado, em detrimento do poder da lei, serviria ao desenvolvimento ao passo que dribla obstáculos legais e institucionais que dificultam a tomada de decisões, a liberação de obras de infraestrutura, etc. Como tem sugerido o filósofo Byung-Chul Han, é provável que o Ocidente se torne mais tolerante ao controle em troca de crescimento econômico — sobretudo após a façanha chinesa de controlar o vírus com agressivas políticas de controle social, ao mesmo tempo que os demais países, especialmente os Estados Unidos, falharam brutalmente.
Resta saber se a China, com efeito, vai assumir, de uma vez por todas, uma posição ativa na política internacional a ponto de exportar o seu sistema político. Noutros tempos, mesmo quando o maoísmo foi adotado em vários países, o gigante oriental não chegou a estabelecer vínculos externos propriamente ditos. Do mesmo modo, se é improvável que o faça agora, é porque isso romperia a regra básica do desenvolvimento chinês: não interferir e nem condicionar suas relações econômicas às políticas internas dos demais países — afinal, como explicou José Luis Fiori, “os chineses julgam que o Estado chinês não está a serviço do desenvolvimento capitalista; ao contrário, é o desenvolvimento capitalista e o próprio Estado chinês que estão a serviço de uma civilização milenar que já se considera o pináculo da história humana”.
A nova diplomacia oriental, decerto, não ultrapassará os limites do pragmatismo chinês — em que se inclui o dogma de jamais desafiar militarmente os Estados Unidos — ao contrário do que fizera a URSS durante a Guerra Fria. Mesmo sem impô-los diretamente, ainda assim, o modelo chinês será introduzido no interior de outros países enquanto efeito lógico da importância objetiva da China — inclusive já é possível enxergar liames entre o desenvolvimento chinês nas últimas décadas e o crescente número de países com regimes políticos semelhantes como Argélia, Angola, Azerbaijão, Belarus, Etiópia, Hungria, Rússia, Singapura, Tanzânia, Turquia e Vietnã.
A pandemia, como vimos, há de acelerar ainda mais essa tendência. Só não sabemos se os Estados Unidos responderão, como de praxe, militarmente, sob o risco de explodir um conflito que poria em risco o mundo inteiro. Ou, seguindo o clamor das ruas incendiadas, com transformações políticas substantivas que reiterem a democracia como a pior forma de governo, com exceção de todas as outras.