A revolução não caberá dentro de um envelope
Dora, uma amargurada ex-professora, ganha a vida escrevendo cartas para pessoas analfabetas na Central do Brasil. Uma de suas clientes é atropelada e o filho, Josué, fica sob os seus cuidados. Ela se lança ao desafio de encontrar o pai da criança e realiza uma viagem ao interior que mimetiza o papel dos Correios desde a criação do Correio-Mor em 1663: abrir caminhos país à dentro, definindo as fronteiras e alargando progressivamente o conhecimento territorial para interligar o Brasil.
No filme Central do Brasil (1998), o empenho sentimental de Dora por Josué reflete o esforço logístico dos Correios em levar cartas, cartões-postais, correspondências, citações judiciais para todo o país. Foi uma bela homenagem de Walter Salles aos Correios no momento em que o século XX chegava ao fim e uma nova era começava.
As revoluções tecnológicas que transformaram o Brasil nas últimas duas décadas estabeleceram a obsolescência para a qual se encaminha os Correios. O email, as redes sociais e o whatsapp substituem o serviço de cartas e demais correspondências físicas. Os serviços bancários prestados em agências dos Correios de municípios pequenos já são feitos por fintechs. Até mesmo as citações judiciais são crescentemente disponbilizadas por meios eletrônicos.
Em tal contexto, chama atenção o barulho em torno do Projeto de Lei (PL) 591/21 da privatização dos Correios aprovado na Câmara semana passada. Tanto o governo quanto a oposição trataram o assunto como decisivo ao desenvolvimento nacional, ao menos pela energia depositada em entrevistas e nas redes sociais.
Pelo lado do governo, é fácil explicar porque Paulo Guedes trata o assunto como urgente mesmo em meio ao desemprego recorde e inflação galopante. É o desespero de quem prometeu privatização da Petrobrás e entregou a petrolífera na mão dos generais. Vale tudo, inclusive vender na baixa, para aliviar a imagem do presidente diante do mercado numa semana marcada pelas ameaças de golpe de Estado e a sanha populista de aumentar os gastos com fins meramente eleitorais.
A oposição, por sua vez, foi atraída ao debate pela convicção de que privatização não é outra coisa senão a expoliação do patrimônio público. Tudo bem que vindo do atual governo tudo é digno de desconfiança, mas a avaliação deveria estar condicionada ao desenho da privatização, sem o pressuposto ingênuo de que a provisão direta pelo Estado é intrinsicamente melhor que a provisão do serviço pelo setor privado.
A deputada federal Tabata Amaral foi achincalhada nas redes sociais pela oposição, inclusive pela militância do seu próprio partido (sim, aquele mesmo que 1 em cada 4 deputados votou a favor do voto impresso). É óbvio que se pode discordar da posição da deputada a favor da privatização, o ruim é que o façam apenas por ser uma privatização, e não pelos seus aspectos técnicos e méritos inerentes (regras de cobertura, qualidade, limite de preço, agência reguladora).
Preocupada com a privatização do serviço de cartas, a esquerda não percebe o que já acontece no serviço de encomendas (onde os Correios não tem o monopólio): empresas como Amazon, Mercado Livre e Magazine Luiza desenvolvem seu próprio sistema de entregas e expandem a dominação no mercado, entregando em até dois dias nas grandes capitais e com custos menores que o próprio Correios. Semana passada publiquei um texto sobre o domínio da Amazon no mercado americano e o riscos sobre a concorrência. O mesmo pode estar ocorrendo no Brasil e a esquerda brasileira ainda parece mais preocupada em consertar o passado do que remediar o futuro.
Independente de Tabata estar certa ou não sobre a privatização dos Correios, a esquerda brasileira deve retraduzir suas pautas radicais para além da identidade narcísica, inserindo certa desconfiança em crenças que independem da verificação em conjecturas específicas. A candura inviolável de Dora cedeu espaço às formas plásticas e futuristas de Lunga (Bacurau) no cinema brasileiro mais recente. Cabe à esquerda fazer o mesmo em suas convicções.