A venda das subsidiárias: constituição e interesses contrapostos

Rodrigo de Abreu Pinto
7 min readJun 8, 2019

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O STF decidiu que a venda das subsidiárias, filhas das empresas-mães, não precisam passar pelo Legislativo. A decisão fechou com chave de ouro estas que foram as duas melhores semanas do governo Bolsonaro. Começando pelas manifestações pró-governo no domingo (26), logo em seguida o governo acertou um pacto federativo com os demais poderes, aprovou a MP da reforma administrativa e anunciou a redução do preço da gasolina. Nessa última semana, ainda obteve o pente-fino no INSS e assistiu o STF facilitar a venda das estatais.

Foi o primeiro julgamento importante do STF após o pacto firmado por Jair Bolsonaro, os líderes do Congresso (Maia e Alcolumbre) e Dias Toffoli, presidente do STF. O ministro de toga foi criticado pela anuência ao pacto, uma vez que parecia tomar partido de causas que possivelmente serão objetos do seu juízo no Supremo. Considerando as pautas definidas como prioritárias no encontro, as causas não são outras senão as econômicas, já que outras agendas não foram incluídas na conversa.

É assim que o STF reitera o caminho duplo que suas decisões recentes já traçavam. Por um lado, “progressista” e contrário ao governo quando julga costumes (criminalização da homofobia) e instrumentos democráticos (defesa da autonomia universitária). Por outro, “liberal” e favorável ao governo em assuntos econômicos como a venda das subsidiárias. Uma vez que essa lógica persista nos próximos julgamentos que envolverão decretos e MPs que foram alvos de contestações, o Supremo tende a abonar as novas restrições do INSS e a alteração na CLT que mudou as regras de contribuição sindical, assim como pode ir contra pontos da flexibilização do porte de armas e da extinção dos conselhos civis da administração pública.

Posições antagônicas sobre as privatizações

Pressentindo a ameaça quanto ao alinhamento automático entre Executivo e Judiciário em temas econômicos (o presidente afirmou dias atrás que “o STF está em sintonia com o governo federal”), a oposição também começou a se movimentar. Recentemente foram criadas três frentes no Congresso: a Frente Parlamentar Contra a Privatização dos Correios; a Frente Parlamentar Contra a Privatização de Bancos Públicos Federais; e a Frente Parlamentar Contra a Privatização da Petrobras. Na atual discussão sobre privatizações, esses grupos defendem que as vendas precisam de autorização legislativa, mas essa posição nem sempre foi privilégio de grupos estatizantes. No governo Dilma, por exemplo, quem batalhava para que as mudanças nas Estatais dependessem do Congresso eram os grupos anti-estatizantes, já que dificultava a criação de novas subsidiárias em empresas como a Petrobrás. Agora, em um governo liderado por Paulo Guedes, são esses mesmos atores que defendem a autonomia do Executivo no manejo das subsidiárias.

Em vista da questão atualmente em disputa, podemos pontuar a diferença entre ambos os grupos através da diferenciação entre desestatização e desinvestimento. O primeiro caso diz respeito a venda propriamente dita das empresas estatais, operação em que a estatal se desfaz e o valor do negócio vai direto para o Tesouro. No caso do desinvestimento, ocorre uma modificação no portfólio de investimentos da empresa por meio da venda de ações e outros bens que integrem o patrimônio da empresa, gerando um aumento do caixa da própria empresa.

A controvérsia é justamente se a venda das subsidiárias (alienação do controle acionário) é um caso de desinvestimento ou desestatização. Para o governo atual, trata-se de desinvestimento, ou seja, não mais que uma operação gerencial cuja facilidade deve ser garantida em nome da eficiência e adequação empresarial. Já aqueles que não veem a privatização com bons olhos, são os que julgam que a perda de controle das subsidiárias corresponde a desestatização, já que a personalidade governamental dessas empresas é desconstituída. O processo deve então ser tratado com máxima atenção, pois a perda das estatais é também a eliminação de um instrumento de planejamento, coordenação e indução do investimento privado em mãos do Estado.

O julgamento do caso no STF

Não é novidade que os ministros adquiriram uma sensibilidade ambígua ao contexto externo. Foi o próprio ministro Barroso que fez questão de deixar isto bem claro ao julgar o caso em questão: “Eu acho que no fundo nós estamos travando um debate político disfarçado de discussão jurídica, que é a definição de qual deve ser o papel do Estado e quem deve deliberar sobre este papel no Brasil atuar”. No entanto, antes disso, há de se lembrar que a questão em jogo era a decisão sobre o sentido de alguns itens da constituição, precisamente aqueles definem o regime de venda das estatais (art. 37, incisos XIX, XX e XI; art. 173, §1).

O art. 37, inciso XIX, estabelece que “somente por lei específica poderá ser criada autarquia e autorizada a instituição de empresa pública, de sociedade de economia mista e de fundação”. Sendo assim, a constituição afirma que é necessário uma autorização legal específica para a criação de estatais. Através do princípio do paralelismo das formas, assim como a criação, a venda das mesmas também está sujeita ao mesmo processo. Explica melhor Carlos Ari Sundfeld (citado pelo ministro Lewandowski):

“O Direito Constitucional Brasileiro impõe a concordância prévia do Legislativo para todas as alterações na estrutura da Administração que envolvam aquisição ou perda da personalidade governamental. Deveras, é necessário autorização legal tanto para o surgimento de uma nova organização governamental como para seu desaparecimento.”

Logo no inciso seguinte do mesmo artigo (art. 37, XX), a Constituição trata especificamente das subsidiárias. Afirma que “depende de autorização legislativa, em cada caso, a criação de subsidiárias das entidades mencionadas no inciso anterior, assim como a participação de qualquer delas em empresa privada”.

Foi o ministro Alexandre de Morais que insistiu numa diferença entre ambos incisos. No caso das subsidiárias, a lei fala somente na necessidade de uma autorização legislativa, de onde o ministro depreendeu que não se tratava de uma autorização específica, mas genérica (ou em aberto). Sendo assim, diferente da “autorização legal específica” do caso anterior, em que é necessária autorização a cada criação ou venda de subsidiárias, a autorização genérica exige apenas que uma lei geral permita a criação ou venda por determinada empresa-mãe (inclusive, a lei poderia ser fornecida na própria lei específica que autorizou a criação da empresa-mãe).

Neste sentido, em diálogo indireto com a venda da TAG pela Petrobrás que tornou urgente o julgamento, o ministro Morais trouxe o exemplo do art. 64 da Lei nº9478. Segundo o texto, “para o estrito cumprimento de atividades de seu objeto social que integrem a indústria do petróleo, fica a Petrobrás autorizada a constituir subsidiárias, as quais poderão associar-se, majoritária ou minoritariamente, a outras empresas”.

No entanto, o que fragiliza a pertinência de uma autorização genérica para transferência das subsidiárias é o exposto no artigo 173 da Constituição. Em seu caput, dispõe que “a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo”. Analisando o artigo, a lei estabelece que o exercício da atividade econômica pelo Estado é a exceção, e não a regra. Não por outro motivo, para que exista precisa ser concernente “aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo”. Ora, em vista de tamanha excepcionalidade e finalidade, não parece insuficiente que o art. 37, XX esteja se referindo a não mais que uma autorização genérica?

Em reforço ao meu artigo, no mesmo artigo 173, §1, a Constituição unifica as empresas-mães e subsidiárias na mesma sujeição ao regramento legal, reforçando a indispensabilidade da lei para ambas. Afirma-se que “a lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços”.

A complexidade questão da eficiência e a lei

É importante lembrar que ao analisar a constituição em detalhe, como tentei fazer aqui, não estou discutindo aqui o mérito da questão. Sei e julgo relevante que o artigo 37 da Constituição afirme que a administração pública deva obedecer ao critério da “eficiência”, e inclusive acho que algumas medidas simplificadoras devem ser tomadas para otimizar a gestão das empresas estatais, permitindo que atuem em condições menos burocráticas e mais similares ao setor privado. Recentemente, a Lei das Estatais (2016) internalizou alguns instrumentos de governança corporativa no meio público, principalmente no que diz respeito as exigências para nomeação de indicados.

É certo que, para os setores do atual governo, tornar desnecessária a autorização do Legislativo para cada criação e venda de subsidiárias é uma das medidas racionalizantes que devem ser executadas. Já eu, não estou seguro disso, não apenas porque há subsidiárias de tamanha importância e valor que parece mais acertado que as decisões sobre elas passem pelo Legislativo. Mais principalmente porque o texto constitucional que analisamos não parece aberto a atender a tal pleito.

Tentando levar em conta a complexidade da questão, o argumento de Lewandowski me pareceu o mais equilibrado, na medida em que não fugiu ao texto constitucional, mas ainda assim procurou encontrar saídas imediatas que otimizassem a gerência das estatais. O ministro defendeu que, nos casos em que a venda de ações das subsidiárias que não levem a perda da posição majoritária na empresa, não seria preciso autorização do Legislativo. Ao contrário, quando as vendas importassem a alienação do controle acionário e a descaracterização da entidade de economia mista, a autorização do Legislativo seria imprescindível.

Para além disso, é preciso que os parlamentares emendem a Constituição, para daí abrir novas possibilidades de manejo das estatais que o texto atual não prevê. Os ministros do Supremo, entretanto, reproduziram o ativismo judiciário que tão bem expressa o voluntarismo salvacionista que eles mesmos assumiram há tempos já não tão recentes. Após a decisão final por 9x2, o presidente Bolsonaro comemorou a decisão, mas foi ele mesmo que dias atrás criticou o STF ao dizer “desculpa o Supremo, eu jamais atacaria um outro Poder, mas não estão legislando?”. Não deixa de ser irônico que a decisão comemorada seja a resposta à pergunta.

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Rodrigo de Abreu Pinto
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Written by Rodrigo de Abreu Pinto

Advogado (PUC-Rio) e Filósofo (FFLCH-USP). Diretor de Inovação da Câmara de Comércio Brasil-Portugal.

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