Administração de companhias: entre a segurança jurídica e os riscos inerentes

Rodrigo de Abreu Pinto
5 min readNov 10, 2021

--

As sociedades anônimas, em especial as companhias abertas, são engendradas pela reunião de grande número de investidores. A abertura de capital é a resposta natural às exigências de crescimento, da qual decorre a pulverização e a consequente atomização do direito de propriedade nas mãos de incontáveis acionistas.

Em face da proporção assumida pelas companhias, ergueu-se a necessidade de transferir, ao menos em parte, o centro de poder para os órgãos de administração A gestão dos acionistas cedeu lugar a gestão dos administradores eleitos por eles. A chamada "cisão entre propriedade e gestão" destacou, de modo definitivo, o papel-chave dos administradores na vida econômica das companhias.

areal útil = area comum (2010) de Marcius Galan.

De modo resumido, a atividade social nas sociedades anônimas é conduzida em dois níveis distintos: a nível dos sócios, por meio das deliberações tomadas em sede de assembleia geral; e no âmbito da administração, na condução diária das atividades sociais pelos conselheiros e diretores.

À título de ilustração, basta ver a Exposição de Motivos do projeto que resultaria na edição da Lei das S.A. Os seus autores, José Luiz Bulhões Pedreira e Alfredo Lamy Filho, destacam que a disciplina relativa aos administradores é não menos que a “seção de maior importância no Projeto”:

“Os artigos 154 a 161 definem, em enumeração minuciosa, e até pedagógica, os deveres e responsabilidades dos administradores. É Seção da maior importância no Projeto porque procura fixar os padrões de comportamento dos administradores, cuja observância constitui a verdadeira defesa da minoria e torna efetiva a imprescindível responsabilidade social do empresário”. (Exposição de Motivos nº 196, de 24 de junho de 1976, do Ministério da Fazenda)

Criada em 1976, a Lei das S.A. tomou a redefinição do papel dos administradores como uma tarefas necessárias ao ensejo de “restaurar as condições básicas para o funcionamento da S.A. e permitir a criação da grande empresa privada nacional”.

Por um lado, a Lei das S.A. duplicou e assim modernizou a estrutura de gestão das companhias. A lei societária anterior (Decreto Lei nº 2.627/1940) adotava o sistema monista que fixava a diretoria como o único órgão de administração da sociedade. A Lei das S.A. adotou sistema dualista em que a administração compete simultaneamente ao conselho de administração e à diretoria, enfim corrigindo entraves que limitavam o desempenho das companhias (como a dificuldade da assembleia em monitorar as atividades da diretoria).

Por outro lado, a Lei das S.A. subordinou os administradores a um regime todo especial, com a atribuição de deveres e responsabilidades sob medida e à altura do poder que lhes é outorgado para planejar e orientar os negócios da companhia.

Com tamanhas responsabilidades e riscos inerentes à complexidade das grandes companhias, arriscava faltar incentivos para que pessoas sérias e capacitadas fossem atraídas aos cargos nos respectivos conselhos de administração e diretorias — inclusive porque o setor privado entãao disputava a mão-de-obra especializada com o setor público, inchado pela criação das grandes estatais que também atraíam mão de obra especializada (como escreveu Alfredo Lamy, "[o] administrador profissional está submetido à mesma tensão do controlador, que corre riscos e visa o lucro como todos os acionistas que o elegeram na assembleia geral, o que não ocorre, nem pode ocorrer, por definição, com o agente estatal, que é julgado por critérios e medidas que não são as do mercado").

Marcelo Vieira von Adamek, em obra clássica sobre a administração das sociedades anônimas, identificou o dilema:

“Coloca-se, assim, a delicada questão de equacionar a responsabilidade civil dos administradores, que, se de um lado não pode ser tratada com excessiva liberalidade, de outro lado também não deve incidir no vício oposto — pois os excessos do legislador outro efeito não teriam senão limitar a atuação de pessoas conscienciosas, capacitadas e bem-intencionadas, afastando-as da direção das empresas, para em seu lugar atrair os aventureiros, trazendo como consequências a ineficiência e a irresponsabilidade na condução dos negócios”.

A opç˜ao do legislador brasileiro versou pela adoção de instutos com o objetivo de conferir segurança jurídica dos administradores.

Dentre as proteções asseguradas pela Lei das S.A., destacam-se (i) a exoneração da responsabilidade dos administradores decorrente da aprovação das suas contas (art. 134, §3º); (ii) o business judgment rule em função do qual o Poder Judiciário não está autorizado a rever o mérito das decisões negociais desde que o administrador tenha agido de boa-fé́ e visando o interesse da companhia (art. 159, §6º); e (iii) as exigências para a ação de responsabilização do administrador em detrimento do surgimento de um mercado de litígios lucrativo (art. 159, §§1º, 3º e 4º).

A Lei das S.A. limita o risco assumido pelos administradores porque, por sua vez, limita a extensão dos instrumentos de justiça disponíveis aos acionistas para a reparação de danos supostamente causados pelos administradores. Como os acionistas podem destituir, a qualquer momento, os administradores que tomarem decisões ruins, seria excessivo sujeitar-lhes, de maneira exagerada, ao risco de ações judiciais, salvo em caso de dolo ou fraude.

Assegurar a segurança dos administradores se justifica tanto para atraí-los a exercer funções na administração das companhias, quanto para estimular que "o administrador seja ousado na gestão dos negócios sociais, e não que atue procurando apenas não ser responsabilizado”, como escreveu Pedro Brigagão em livro sobre o business judgement rule.

O outro lado dessa história, que também tem sua parcela de razão, são as críticas ponderadas ao tratamento por vezes “leniente” que decorre das barreiras a responsabilização pessoal dos administradores.

Exemplos de livros como Enforcement e Tutela Indenizatória no Direito Societário e no Mercado de Capitais de Guilherme Setoguti Pereira, e Responsabilidade Societária: danos causados pelos administradores de Ana Carolina Weber, discutem a baixa efetividade das ações indenizatórias previstas na lei societária para a recuperação das perdas causadas à companhia pelos seus administradores.

Embora apoiada na genialidade dos seus criadores, ajustes pontuais na Lei das S.A. podem remediar parte desses entraves. Exemplo disso é a sugestão de Marcelo Vieira von Adamek em artigo recente de reforma do quitus (art. 134, §3º, da Lei das S.A.) para estabelecer que a aprovação das contas produz efeitos de isenção de responsabilidade dos administradores, porém apenas em relação aos fatos expressamente revelados aos acionistas que aprovaram a quitação na assembléia geral.

Se os poucos ajustes contrastam com o desenvolvimento gerencial que as companhias brasileiras experimentaram com a criação da Lei das S.A., é prova de que a opção política de nossa legislação societária em conferir ampla proteção aos administradores se revelou bem-sucedidade.

--

--

Rodrigo de Abreu Pinto
Rodrigo de Abreu Pinto

Written by Rodrigo de Abreu Pinto

Advogado (PUC-Rio) e Filósofo (FFLCH-USP). Diretor de Inovação da Câmara de Comércio Brasil-Portugal.

No responses yet