Alteração no free float da B3: proteção aos minoritários, liquidez e concorrência entre bolsas

Rodrigo de Abreu Pinto
7 min readDec 8, 2021

A regulação do mercado de capitais não é competência exclusiva dos reguladores estatais. Superada a crença vã na onipresença e onisciência desses, as regras que disciplinam a estrutura do mercado atribuem ao autorregulador — no caso, a bolsa de valores — competência para editar regras de funcionamento e supervisionamento da atuação dos participantes.

Responsáveis pela edição das normas destinadas a regular o exercício de suas atividades, as bolsas de valores, dentre as quais a brasileira (B3), criaram segmentos especiais de listagem.

A listagem das companhias em tais segmentos é precificada por acionistas e potenciais investidores, mas o acesso está condicionado ao preenchimento de requisitos de governança corporativa superiores aos impostos pela lei.

Formas (1951) de Ivan Serpa

Dentre os requisitos, verifica-se o compromisso das companhias listadas manterem uma quantidade mínima de ações em circulação, o chamado free float.

Por ações em circulação, o artigo 4º-A, §2º, da Lei das S.A. compreende “ações em circulação no mercado todas as ações do capital da companhia aberta menos as de propriedade do acionista controlador, de diretores, de conselheiros de administração e as em tesouraria”.

Para que uma companhia possa aderir aos Níveis 1, 2 e Novo Mercado da B3, deve manter um free float de, pelo menos, 25% do seu capital social.

A regra do free float mira dois objetivos principais:

(i) preservar as condições para o exercício, pelos acionistas não controladores, de direitos previstos na Lei das S.A. que dependem da titularidade de determinada participação acionária (afinal, quanto maior o free float, maior a chance dos acionistas minoritários possuírem ações que correspondam ao percentual mínimo para exercício desses direitos); e

(ii) assegurar a liquidez das ações, compreendendo “liquidez” como a facilidade para transformar a ação em moeda (pois, em caso de poucas ações fora do free float, a probabilidade de operações com ações da companhia é diminuta).

Além da regra básica do 25% de free float, o segmento do Novo Mercado ainda prevê duas regras alternativas:

(i) manutenção de free float de até 15%, desde que o volume médio diário de negociação se mantenha igual ou superior a R$ 25 milhões, considerados os negócios realizados nos últimos 12 meses; e

(ii) na hipótese de ingresso no Novo Mercado simultâneo à realização de IPO, a companhia pode manter, nos primeiros 18 meses, free float de até 15%, caso o volume financeiro do IPO seja superior a R$ 3 bilhões.

Desde outubro, a B3 abriu a Audiência Pública nº 01/2021 para ouvir o mercado sobre alterações na regra de free float. As sugestões serão levadas, em seguida, para votação entre as companhias que compõem cada segmento de listagem, depois da qual faltará apenas o aval da CVM sobre as mudanças. A expectativa da B3 é que as regras entrem em vigor no primeiro trimestre de 2022.

O pressuposto para a realização da Audiência Pública é de que as regras de free float devem proteger o exercício de direitos de minoria e a liquidez das ações, sem que representem desincentivos para que as companhias ingressem em patamares superiores de governança.

As alterações propostas pela B3 na Audiência Pública são as seguintes:

(i) redução do free float de 25% para 20%;

(ii) ampliação das regras alternativas, atualmente previstas somente no Novo Mercado, para todos os segmentos, permitindo a manutenção de free float de 15% desde que o volume médio diário de negociação se mantenha igual ou superior a R$ 20 milhões ou, em caso de ingresso na B3 simultâneo ao IPO, o volume financeiro do IPO seja superior a R$ 2 bilhões.

Para avaliar a pertinência das alterações, vamos pô-las diante dos dois objetivos do free float.

Com relação ao exercício de direitos pelos minoritários, a reforma da Lei nº 10.303/2001 alterou a Lei das S.A., por meio da adição do artigo 291, conferindo à CVM a faculdade de reduzir as porcentagens mínimas de participação acionária necessárias ao exercício de inúmeros direitos da lei societária.

A Instrução CVM nº 627/2020 flexibilizou o exercício, pelos minoritários, dos direitos de visualização por inteiro dos livros da companhia (art. 105 da Lei das S.A.); convocação de assembleia geral (art. 123, PU, c); pedido de informações ao administrador (art. 157, §1º) e ao Conselho Fiscal (art. 163, §6º); e propositura da ação derivada contra os administradores (art. 159, §4º).

A partir de então, o exercício de tais direitos ficou sujeito aos seguintes percentuais:

Ainda que a CVM não tenha flexibilizado o exercício de certos direitos como o voto múltiplo (art. 141) e a ação contra o acionista controlador (art. 246, §1º), como lhe facultava o artigo 291 da Lei das S.A., pode-se dizer que o enforcement pelos minoritários se tornou mais acessível desde o ano passado, embora isso não se confunda com o efetivo exercício desses direitos.

Com relação a liquidez, a falta dessa é uma das características históricas do mercado de capitais brasileiro, estando diretamente relacionada com a concentração acionária que predomina nas companhias locais (ver, por exemplo, o relatório da IOSCO — Influencing Liquidity in Emerging Markets).

Por outro lado, como ensina Thiago Saddi Tannous em livro referência sobre o assunto, liquidez é um atributo multidimensional e não se resume a correlação entre com a concentração acionária.

Importa, nesse sentido, ressaltar transformações recentes do mercado brasileiro que aprimoraram a liquidez:

(i) maior participação de investidores estrangeiros (“quanto mais especuladores houver no mercado, maior há de ser sua liquidez”, como lembra Rachel Sztajn);

(ii) crescente número de investidores de varejo;

(iii) redução das taxas de corretagem;

(iv) negociações em sistemas eletrônicos (em lugar dos corretores nos pregões), incluindo a popularização dos home brokers;

(v) aumento das companhias em segmentos de listagem especiais;

(vi) melhorias na infraestrutura de negociação da B3;

(vii) profissionalização de market makers;

(viii) melhorias no arcabouço regulatório da CVM destinado aos intermediários.

Como dito acima, a regra de free float não pode se tornar um desincentivo ao ingresso de companhias no mercado de capitais. A B3, por outro lado, noticiou o crescimento dos pedidos de dispensa em relação às regras de free float , tendo recebido quase 20 solicitações só em 2021.

A mudança na regra, tal como proposta pela B3, confere maior segurança jurídica para essas companhias que, por diversas razões, esbarram em dificuldades para cumprir os atuais níveis de free float .

No edital da Audiência Pública, a B3 reforçou que as regras atuais divergem dos padrões internacionais, inclusive de mercados emergentes, menos exigentes do que as regras em vigor no Brasil.

Não se deve perder de vista que o fluxo de capitais se internacionalizou e já não encontra limites nas barreiras territoriais dos países. O acirramento da competição entre as bolsas ao redor do mundo se expressa no movimento de empresas nacionais optando pela realização de ofertas públicas em mercados estrangeiros e citando, dentre as razões para a migração, os atributos de rigidez e inflexibilidade do arcabouço regulatório brasileiro.

Em movimento que engloba a classe política, a CVM e a B3, a flexibilização do free float se insere no panorama mais amplo de reformas que almejam facilitar o acesso ao mercado de capitais nacional, bem como aumentar a competitividade em face dos seus concorrentes estrangeiros, com a finalidade de atrair novas ofertas para captações de recursos no mercado de capitais.

Estão incluídas a nova regulamentação de BDRs (Resolução CVM nº 3/2020), de fundos de investimento (Audiência Pública CVM nº 08/2020) e de ofertas públicas (Audiência Pública CVM nº 02/21); a adoção do voto plural (Lei nº 14.195/2021); a criação do mercado de acesso (Lei Complementar nº 182/2021); e a Lei de Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2020).

A redução do percentual do free flot é elogiosa nas atuais circunstâncias, embora ainda limitada. Indo além, seria oportuno uma revisão da própria definição de free float, de modo a incluir critérios qualitativos que lapidem o conceito sem a perda de sua objetividade.

A falta de critérios qualitativas resulta na desfuncionalidade do conceito bem ilustrada por Daniel Vio:

“Se três fundos de pensão não vinculados ao controlador detêm 25% do capital de uma companhia de modo totalmente estático, com horizonte de investimento de décadas e sem qualquer perspectiva de negociação em curto prazo, haverá obviamente menores possibilidades de monetização do investimento de pequenos acionistas do que na hipótese em que apenas 10% das ações estão pulverizadas entre milhares de pessoas, com grande volume médio de negociação”.

Ao contrário da regra limitada a mera fixação abstrata de um limite para a participação detida pelo acionista controlador, uma solução possível estaria em fixar um limite máximo de participação para que um acionista seja considerado titular de “ações em circulação”, já que acionistas minoritários não raro se tornam passivos após a aquisição de posições acionárias relevantes.

Como sugere Thiago Saddi Tannous, “é preciso abrir espaço a outros critérios, igualmente relevantes, para que se mensure a liquidez do mercado acionário: a quantidade de acionistas, o volume de negócios, o volume financeiro representado pelas ações em circulação, e assim por diante”.

Ao menos por ora, o autorregulador fez o que estava ao seu alcance. Fica o apelo para que alterações futuras, inclusive na própria na Lei das S.A., possam ir ainda mais longe.

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Rodrigo de Abreu Pinto

Nascido em Recife, é formado em filosofia pela FFLCH-USP e em direito pela PUC-Rio.