Ano novo, velhas questões: a sociologia do poder de controle nas S.A.

Rodrigo de Abreu Pinto
7 min readJan 12, 2022

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A revista Capital Aberto realizou uma série de encontros para discutir os 45 anos da Lei das S.A. ao longo de 2021.

O último encontro em dezembro debateu Sociologia do Poder de Controle, o seminal artigo de José Alexandre Tavares Guerreiro.

Além do próprio Tavares Guerreiro, estavam presentes Marina Pargendler (uma das autoras do The Anatomy of Corporate Law) e o mediador Henrique Barbosa.

Escrito uma década após a criação da lei, o artigo de Tavares Guerreiro partia da constatação de que “a estrutura legal da sociedade anônima no Brasil ainda não permite a institucionalização da empresa, que reflete, fundamentalmente, a predominância decisória do acionista controlador”.

A máscara, o gesto, o papel (2017) de Sofia Borges

Isso não deveria surpreender, afinal. Os próprios autores da Lei das S.A., os brilhantes Alfredo Lamy e José Luiz Bulhões Pedreira, afirmavam que a Lei das S.A. se baseia em um sistema centralizado na figura do controlador

Em suma, um sistema em que os órgãos administrativos têm menos autonomia e a assembleia geral tem mais atribuições. Onde o acionista controlador usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia, conforme a dicção do art. 116.

Fábio Konder Comparato, em seu O Poder de Controle na Sociedade Anônima, reconheceu que “poderia, sem dúvida, o legislador manter essas prerrogativas funcionais diluídas no corpo acionário, tal como ocorria no passado. Preferiu, no entanto, desde a Lei no 6.404/76, localizá-las na figura do controlador”.

Assim fizeram Lamy e Bulhões porque, também assim, funcionavam as companhias brasileiras naquela altura (à título de ilustração, apenas Brahma e Lojas Americanas não tinham controlador definido). Diziam que um “projeto não pode, em nome de objetivos ideológicos, desconhecer a realidade social que pretende regular”.

Lamy e Bulhões não estavam errados, sobretudo porque não enxergavam tal realidade como imutável. Muito pelo contrário. A genialidade da dupla estava em combinar o pragmatismo com a ambição de transformação da realidade.

A máscara, o gesto, o papel (2017) de Sofia Borges

O objetivo primordial das Lei das S.A. se resumia em “criar a estrutura jurídica necessária ao fortalecimento do mercado de capitais de risco no País”, como afirmam na Exposição de Motivos.

Para tanto, era necessário criar uma forma jurídica que incentivasse as empresas a se constituírem como companhias abertas. Nisso, incluía-se (i) reconhecer a importância do controlador e assegurar-lhe o maior número de opções para organizar a empresa; e (ii) criar instrumentos como as ações preferenciais, pelas quais as companhias poderiam abrir o capital sem abrir mão do controle.

As companhias nacionais enfim se capitalizariam no mercado de capitais e o desenvolvimento desse, por sua vez, não surtiria apenas que o Brasil suplantasse o capitalismo marcado pela forte participação do Estado que financiava os grandes empreendimentos país.

A evolução do mercado de capitais atrairia uma massa de investidores cuja participação nas companhias provocaria, em algum nível, uma dispersão acionária, bem como uma demanda crescente de proteção dos minoritários.

Em paralelo, e na esteira do financiamento mais barato via mercado, as companhias brasileiras alcançariam tamanha complexidade e isso naturalmente elevaria a importância dos managers e o deslocamento do poder, ou ao menos de parte dele, para o Conselho de Administração das companhias.

Usando as palavras de Lamy e Bulhões para demarcar certa teleologia da Lei das S.A.:

Por um lado, “a criação da empresa e a sua expansão até alcançar a escala mínima compatível com a institucionalização não dispensa — nem no Brasil, nem em qualquer outro país de economia de mercado — a figura do empresário-empreendedor e a função do acionista controlador”.

Por outro, “ao fim do ciclo, chegamos a uma nova realidade, um novo conceito, a uma propriedade dispersa, móvel, gerida por profissionais que não são donos, dinâmica, e que só tem valor na medida que apresenta a produtividade”.

A máscara, o gesto, o papel (2017) de Sofia Borges

Esse fenômeno em alguma medida se concretizou com a criação do Novo Mercado da B3, que inspirou companhias sem controle majoritário e elevados níveis de governança corporativa (ver, por exemplo, a ótima pesquisa de Érica Gorga sobre o assunto).

A genialidade de Lamy e Bulhões ficou evidente pois a Lei das S.A., embora inalterada, garantiu a liberdade necessária ao surgimento de novo modelo por meio da autorregulação. Basta notar que as regras de listagem do Novo Mercado quanto ações ordinárias, formação do Conselho de Administração, tag allong e disclousure se revelaram compatíveis com o modelo adotado pela Lei das S.A..

Não obstante, estão preservados na lei uma série de elementos normativos que contribuem para a manutenção da concentração estrutural de poder, em especial nas companhias que possuem controlador definido ou passam a tê-lo pela associação de acionistas relevantes via acordo de acionistas.

Em Influência do Patrimonialismo na Sociedade Anônima, Eduardo Secchi Munhoz aponta três dos instrumentos concentracionistas da Lei das S.A.:

(i) Exercício pleno do controle com 50% mais um das ações, já que a lei não exige mais que maioria simples para decidir todas as questões da companhia (art. 136), ao contrário de outros ordenamentos que exigem quórum qualificado para decisões como criação de ações preferenciais, redução de dividendos, alteração do objeto social e fusões, incorporações e cisões.

(ii) Competência ilimitada da assembleia para destituir os membros do Conselho de Administração a qualquer tempo e independentemente de motivação (arts. 121 e 140), diferente do modelo americano em que o mandato dos administradores só termina antes do vencimento em casos raros e justificados.

(iii) A vinculação dos administradores pelo acordo de acionistas, mesmo em temas de competência exclusiva do Conselho de Administração (art. 142).

Somando tudo, “a estrutura de poder da S.A. estabelece uma subordinação de fato (ainda que não de direito) do interesse da sociedade ao interesse prevalecente do acionista controlador”, como conclui Tavares Guerreiro em Sociologia do Poder de Controle.

A máscara, o gesto, o papel (2017) de Sofia Borges

Em contrapartida aos poderes conferidos ao controlador, a Lei das S.A. inovou ao subordiná-lo a um regime especial de deveres e responsabilidades. O objetivo era garantir o equilíbrio, de modo a proteger as minorias de abusos e limitar os benefícios que o controlador pode extrair da sua posição (os chamados private benefits of control).

Sendo que o famoso estudo de Luigi Zingales e Alexander Dyck (Private benefits of control: An international comparison) apontou justamente o Brasil como país em que mais existem benefícios particulares associados ao poder de controle, em comparação a outros 38 ordenamentos. A conclusão é de que o regime especial de deveres e responsabilidades, impostos aos controladores pela Lei das S.A., não foi suficiente para coibir os abusos.

Grande parte disso é consequência de outro elemento concentracionista da Lei das S.A.: a limitação dos mecanismos que permitem aos minoritários buscar a punição aos abusos aos controladores, causando-lhes consequências materiais imediatas. Os deveres e responsabilidade dos controladores até existem, mas faltam-lhe mecanismos que assegurem o cumprimento efetivo.

Para isso, contam os elevados percentuais para a propositura de ação de responsabilização aos controladores e administradores (arts. 159 e 246); a ausência de prêmios para estimular a propositura da ação contra os administradores (art. 159); a necessidade de anulação da deliberação de aprovação de contas para propositura de ação de responsabilidade contra o administrador (art. 134); e a ausência de mecanismos especiais de identificação dos ilícitos e de produção de prova para as ações derivadas (arts. 159 e art. 246).

Como conclui Tavares Guerreiro, “apesar de a Lei 6.404 ter adiantado de forma progressista a responsabilidade do acionista controlador por atos praticados com abuso de poder, o esquema sancionatório desses atos é ainda insuficiente”.

A máscara, o gesto, o papel (2017) de Sofia Borges

A revisão das normas citadas acima, tanto da disciplina dos controladores quanto do enforcement, devem ser discutidas pelo direito societário brasileiro, ao menos se esse tem a pretensão de contribuir para o crescimento econômico e a democratização do capital do país.

A crise econômica desde 2014 resultou em novo ciclo de concentração, seja por meio de tomadas de controle, operações de fechamento de capital ou pela redução do número de companhias ingressando no Novo Mercado. Pode-se dizer que o Novo Mercado inseriu mais diversidade e reduziu os níveis de concentração acionária, mas é forçoso admitir que o acionista controlador ainda exercer papel central.

Não se trata de advogar que uma sociedade sem controlador é pior ou melhor que outra que o tem (há estudos em ambas as direções), mas de visar a consumação de “uma sistemática que assegure ao acionista minoritário o respeito a regras definidas e equitativas, as quais, sem imobilizar o empresário em suas iniciativas, ofereçam atrativos suficientes de segurança e rentabilidade”, como afirmaram Lamy e Bulhões na Exposição de Motivos.

Nos idos do Sociologia do Poder de Controle e ainda hoje, trata-se da busca por uma forma societária que quanto menos se resume a vontade pessoal do controlador, mais se aproxima da função social da empresa.

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Rodrigo de Abreu Pinto
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Written by Rodrigo de Abreu Pinto

Advogado (PUC-Rio) e Filósofo (FFLCH-USP). Diretor de Inovação da Câmara de Comércio Brasil-Portugal.

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