O fiscalismo contra a Carta de 88: PECs do Plano Brasil Mais
Introdução
Olhando a imagem da equipe econômica caminhando ao Senado, prestes a entregar o Plano Brasil Mais, não consegui pensar outra coisa se não em como tentavam parecer adultos. De terno e gravata, dezena de homens marchando, aparentemente seguros de que as crianças ficaram no playground. Agora é a vez dos mais velhos, sugeria a postura do ministro Paulo Guedes.
Se não faltaram vezes que os filhos do presidente bagunçaram o recinto, o governo só tinha mandado uma reforma com R maiúsculo até então. À diferença da reforma da Previdência, os nove meses de tramitação e os obstáculos imprevistos levaram Paulo Guedes a mudar de estratégia. Ali, o ministro se irritava a cada alteração que o Congresso fazia, ameaçando abandonar o cargo em várias ocasiões. Agora, a estratégia é inversa: “seria arrogância tola falar que há ponto inegociável”, afirmou ele. Ou é 8, ou 80.
Só para se ter uma ideia, o governo mal enviou a proposta e horas depois o ministro já veio a público dizer que o texto foi retificado. No anúncio de lançamento, Paulo Guedes frisou que “os líderes da Câmara e do Senado ajudaram a calibrar a proposta”. Porém, durante a mesma tarde, Rodrigo Maia criticou a inclusão dos servidores inativos dentro do piso mínimo das despesas com saúde e educação. Não tardou para que Guedes logo admitisse a exclusão do tema.
Indo direto ao ponto: a equipe econômica mandou um plano enorme e confuso, difícil de entender onde começa e termina, confiando que é melhor enfiar um monte de coisa para ver se pega alguma coisa. Afinal, o que sobrar tá valendo!
O governo, no total, enviou três PECs: 1) PEC Emergencial (186); 2) Pec dos Fundos Públicos (187); 3) PEC do Pacto Federativo (188).
Se uma das três PECs enviadas é denominada “emergencial”, não seria mais lógica enviá-la antes das demais, já que seus efeitos deverão se dar no curto prazo?
Não dá para entender muito bem o que Paulo Guedes quis fazer, o que se sabe é que essa bagunça da equipe econômica foi uma das causas do recente fracasso do leilão do pré-sal — momento, portanto, em que também os adultos foram postos em xeque. Desta vez, levando em conta os aspectos negativos das PECs, soa até como um alívio que o governo seja tão ineficiente.
Caso concentrasse os esforços numa estratégia mais precisa, o governo certamente teria mais força para aprovar os pontos mais delicados. Mais do que isso, aproximaria a população da discussão de temas tão importantes! Mais Brasil e menos Brasília deveria significar, além do fortalecimento dos Estados, uma participação mais destacada dos cidadãos.
Se as crianças ficaram no playground, o povo ficou trancado no quarto — e o pior: sem entender nada do que está acontecendo lá fora.
Não sem razão, a economista Monica de Bolle foi precisa em defender que “esse tipo de discussão deveria ser feita em uma assembleia constituinte”. Isso, não apenas pela quantidade das normas constitucionais que serão alteradas, mas pela profundidade das alterações. Sem mais nem menos: é o próprio caráter cidadão da constituição que está em disputa.
Em seu artigo 6º, a Constituição enumera os direitos sociais que norteiam as tarefas a serem concretizadas pelos poderes públicos: “a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”.
A novidade é que a PEC complementa o artigo com a seguinte ressalva: “será observado, na promoção dos direitos sociais, o direito ao equilíbrio fiscal intergeracional.”
Na prática, os direitos sociais estariam sujeitos ao mais ou menos indefinido “equilíbrio fiscal intergeracional”. Não que os números devam ser desconsiderados, muito pelo contrário — sabe-se que não há almoço nem direitos grátis. Só não podem servir de esteio para negar uma Constituição que prescreve o estado de bem-estar social, sobretudo incluídos numa proposta que peca pela falta de clareza.
Por essa ótica, o Plano Brasil Mais tanto inviabiliza “por fora” as aspirações democráticas ao exaurir o debate público em torno da proposta. Quanto “por dentro” ao desvirtuar o programa a que serve a carta de 88.
A seguir, passo a analisar os principais pontos da proposta, destacando os aspectos positivos e negativos do que está em jogo.
Dado o caráter confuso das PECs, separei por temas (a quantidade já dá ideia da amplitude das mudanças), indicando em qual das PECs está o assunto e os artigos constitucionais que foram alterados ou adicionados. À título de facilitar a compreensão, dividi os temas em dois grandes grupos: 1) Reforma do Estado e 2) Reformas Fiscais.
1. Reforma do Estado
1.1. Subtração dos pequenos municípios
1.2. Eliminação dos fundos públicos
1.3. Minirreforma administrativa
1.4. Desfinanciamento do BNDES
1.5. Diminuição dos gastos com saúde e educação
1.6. Descentralizar de recursos em benefício dos Estados2. Reforma Fiscal
2.1. Redução dos subsídios e isenções
2.2. Corte automático de gastos
2.3. Dívida pública como âncora fiscal de longo prazo
1. Reforma do Estado
1.1. Subtração dos pequenos municípios (PEC 188 — Pacto Federativo).
A ideia é boa e está na linha da regra aprovada em 2015, durante o governo Dilma, de que um novo município deveria contar necessariamente com 6 mil habitantes (Norte e Centro-Oeste), 12 mil (Nordeste) ou 20 mil (Sul e Sudeste).
Desta vez, o governo colocou duas condições para que o município seja incorporado por vizinhos: 1) possuir menos de cinco mil habitantes e 2) arrecadar via impostos menos de 10% da própria receita (alteração no art. 115). Na prática, 17% das cidades (843) estão nessas condições.
Por outro lado, a PEC tramitará em ano de eleição, justamente nos municípios, o que dificulta a aprovação. No mais, a qualidade do texto precisa melhorar de modo a incluir cláusula para que municípios em condições “especiais” (ex: muito longe dos vizinhos) sejam preservados.
1.2. Eliminação dos fundos públicos (PEC 187 — Fundos Públicos).
A PEC elimina automaticamente 248 fundos públicos. Desses, 165 foram instituídos antes da Constituição, como o ultrapassado Fust (Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações). Outros, por sua vez, represam recursos subutilizados que poderiam ser alocados a outros áreas, como o Funpen (Fundo Penitenciário Nacional) e o Fundo de Desenvolvimento do Ensino Profissional Marítimo.
A restauração do fundo dependerá de ratificação via lei complementar no prazo de dois anos. Caso contrário, será excluídos definitivamente.
Por mais que a equipe econômica afirme que setores deficientes poderiam melhorar caso recebessem as quantias empoçadas em fundos obsoletos, a PEC estabelece que os recursos disponibilizados serão canalizados para o pagamento da dívida pública.
No mais, outros 33 fundos importantes serão mantidos, a exemplo do Fundos de Participação dos Estados e Municípios, o Fundeb, o Fundo Nacional de Saúde, etc.
1.3. Minirreforma administrativa (PEC 188 — Pacto Federativo).
Na sequência das reformas, o ministro da Economia afirmou que a próxima da fila seria a reforma administrativa. Não obstante, Paulo Guedes já começou a propor alterações permanentes ao regime dos servidores públicos para restringir o aumento das despesas obrigatórias.
Ainda que não altere a estrutura de carreiras propriamente dita, a PEC proíbe a revisão anual da remuneração dos servidores (alteração no art. 37, X), além de vedar que benefícios sejam concedidos retroativamente ou antes do trânsito e julgado (alteração no art. 37, XXIII).
As medidas são positivas, só tenho dúvidas se não deveriam ter sido incluídas na reforma administrativas e não aqui.
1.4. Desfinanciamento do BNDES (PEC 186 — Emergencial // PEC 188 — Pacto Federativo).
Um dos maiores equívocos da PEC está na descaracterização do BNDES, a principal fonte de financiamento a longo prazo do país. Como medida permanente, a transferência do PIS/Pasep (principal fonte de recursos do banco público) será reduzida de 40% para 14%, repetindo o que Paulo Guedes tentou na reforma da Previdência e o Congresso barrou.
1.5. Diminuição dos gastos com saúde e educação (PEC 188 — Pacto Federativo).
Sobre os gastos sociais, a principal consequência da PEC seria a eliminação do piso obrigatório da saúde e educação. Dada a pressão que recebeu antes mesmo de envia-la, Paulo Guedes voltou atrás, pero no mucho. Agora, o piso de ambas será mantido e somados (25% da RLI para educação e 12% da RLI para saúde. Em mãos do valor do total (37% da RLI), o governante poderá repartir livremente entre as duas áreas, conforme as suas prioridades.
Tal medida pode acarretar disputas setoriais pelos recursos, mas pode também ampliar o raio de ação dos gestores (sem furar o piso constitucional), gerando possíveis ganhos de eficiência.
O principal golpe sobre os gastos sociais, no entanto, estão em outros dois lugares menos visíveis:
1) Os royalties do petróleo já não serão mais vinculados às despesas com saúde e educação, revogando uma medida que Dilma promulgou na esteira das manifestações de Junho de 2013 (revogação da Lei Nº 12.858/2013).
2) As despesas com saúde não estarão mais indexadas à variação positiva do PIB (revogação do art. 5º da LC nº141/2012).
1.6. Descentralizar recursos em benefício dos Estados (PEC 188 — Pacto Federativo).
Um ponto positivo da PEC é evitar que os recursos da exploração econômica do petróleo, gás e minérios (como o pré-sal) sejam canalizados ao pagamento da dívida pública. Em lugar disso, estabelece que quantias consideráveis serão destinadas aos Estados e municípios, sob a condição de que não sejam aplicados no pagamento de pessoal ativo, inativo e pensionista (alteração no art. 20, §3 e 4).
À medida que os novos recursos, somados aos efeitos contracionistas dos gatilhos, remedeiem as finanças dos Estados e municípios, o governo federal introduzirá, a partir de 2026, um novo modus de relação entre a União e os entes subnacionais baseado no fim da solidariedade fiscal.
Dali em diante, a União não mais fornecerá garantias para as operações de crédito, nem disponibilizará mecanismos complementares de estabilização (como as contínuas renegociação das dívidas) aos Estados e municípios (novo art. 167, XII e XIII).
O objetivo é que os Estados limitem a irresponsabilidade fiscal pois não serão mais socorridos pela União, da qual os governadores arrancam o auxílio via pressão política. Resta saber como ficarão os entes federativos, em momentos de recessão, sem a União a estabilizadora do ciclo econômico.
2. Reforma Fiscal
2.1. Redução dos subsídios e isenções (PEC 188 — Pacto Federativo).
Aqui, Paulo Guedes retoma uma das suas maiores promessas de campanha: a redução dos benefícios tributários.
Embora sem efeito prático imediato, posto que não afirma quais benefícios cessarão, a PEC declara a intenção de reduzi-los pela metade até 2026 (novo art. 167, XIV). Daqui para lá, será questão de avaliar quais subsídios serão finalizados.
Ao pé da letra, equivalerá a sair de R$ 307 bilhões por ano (4% do PIB atual) até cerca de R$ 150 bilhões (2%).
A medida será positiva a depender dos tributos que sejam revistos. Na linha de frente, espera-se que esteja a revisão de subsídios claramente regressivos como o Simples Nacional (R$ 75 bilhões por ano), as isenções no Imposto de Renda (R$ 51 bilhões por ano) e vários dos subsídios agrícolas.
2.2. Corte automático de gastos (PEC 186 — Emergencial // PEC 188 — Pacto Federativo).
A medida consiste em acionar os chamados gatilhos fiscais para barrar o crescimento dos gastos públicos. Os gatilhos, com efeito, são mecanismos que alteram o funcionamento da máquina pública e reduzem as despesas por um prazo de dois anos.
A PEC delimitou duas maneiras dos gatilhos virem à tona:
1- Regra de Ouro (novo art. 167-A): uma vez que as receitas não cubram as despesas correntes, o governo precisará de crédito suplementar. No entanto, a Regra de Ouro proíbe empréstimos que não sejam para financiar investimentos — ou seja, proíbe endividamento para cobrir despesas correntes. Atualmente, a única maneira de flexibilizar a Regra de Ouro se dá via autorização do Congresso para obter os empréstimos. A PEC, por sua vez, estabelece que o Congresso pode aprovar o crédito, mas que os gatilhos então entram em ação imediatamente.
2- Teto de Gastos (alteração no art. 109 do ADCT): criado pelo governo Temer, o Teto de Gastos já previa o corte automático de despesas em caso de extrapolação do limite do Teto. No entanto, a regra formulou mal o acionamento dos ajustes, já que os gatilhos só seriam ativados quando as despesas literalmente batessem no teto, enquanto o orçamento tinha que ser preparado respeitando o limite (ainda que fosse óbvia a impossibilidade de cumpri-lo). De agora em diante, o próprio Orçamento já poderá prever o acionamento. Isso ocorrerá sempre que orçamento estipular despesa obrigatória que ultrapasse 95% da despesa total (nível que indica um espaço fiscal limitado para despesas discricionárias). Em outras palavras, a PEC estabeleceu um teto abaixo do Teto: por um lado, o Teto de Gastos delimita as despesas máximas; por outro, o teto dos gatilhos assinala até onde as despesas obrigatórias podem subir.
Os gatilhos envolvem, basicamente, limitações ao funcionalismo público como a suspensão de reajustes salariais, promoções e concursos públicos. Para quem se lembra, essas restrições já eram previstas para o caso de quebra do Teto de Gastos. A novidade da PEC é a redução de 1/4 da jornada de trabalho com o abatimento proporcional nos vencimentos (alteração no art 37, XV), indo de encontro à recente decisão do STF que barrou essa possibilidade (já que a Constituição até então afirma que “os vencimentos dos ocupantes de cargos e empregos públicos são irredutíveis”).
A pergunta que fica é: será que reduzir 1/4 da jornada de trabalho e dos salários não é exagerado?
Basta pensar em profissionais de saúde e professores universitários trabalhando 25% a menos, que então concluímos que os serviços claramente serão prejudicados. Com relação ao corte de 25% das remunerações, se não fará falta aos funcionários públicos que ganham altos salários (inclusive acima do limite constitucional), certamente fará aos enfermeiros, professores e agentes públicos que terão a renda familiar comprometida.
O ponto positivo, embora limitado, é a reserva de 25% da verba economizada pelos gatilhos (cerca de R$ 7 bilhões) para o investimento em infraestrutura (novo art. 186, art. 4, §1).
Partindo para a análise, se não bastasse a confusão entre as regras que hão de gerar inconsistências e ambiguidades, o governo já parte do princípio que os gatilhos serão ativados sine qua non, em lugar de interpreta-los como soluções para situações de emergência. Vale lembrar que os servidores públicos acabaram de passar por uma reforma da Previdência, e não parece razoável submetê-los à outras restrições em tão pouco tempo.
O ideal seria elevar o limite do Teto de Gastos (o que elevaria também o “teto abaixo do teto”) e resgatar o investimento públicos de modo a acelerar o crescimento no curto prazo, ao mesmo tempo que as demais reformas vão assegurando a sustentabilidade a longo prazo.
Nesse meio-tempo, em caso de descumprimento da Regra de Ouro, o Congresso se comprometeria a avalizar os empréstimos sem ativação dos gatilhos, tal como ocorre atualmente, sem deixar o presidente em risco de cometer crime de responsabilidade (o que ocorre se gastar sem a autorização do Congresso)
Ao final, caso o impulso ao desenvolvimento não surtisse efeito e causasse efeito negativo dívida pública, reduziríamos o Teto e os gatilhos do Teto seriam automaticamente acionados.
2.3. Dívida pública como âncora fiscal de longo prazo (PEC 188 — Pacto Federativo).
Na introdução, mostrei como os direitos sociais, prescritos no art. 6 da Constituição, estarão sujeitados ao “equilíbrio fiscal intergeracional” que a PEC adiciona ao respectivo artigo.
Na prática, pode-se estipular que o equilíbrio será parametrado por duas regras: 1) o Teto de Gastos já existente e 2) o nível da dívida pública, nomeado pela PEC como uma âncora fiscal de longo prazo.
De acordo com o texto, uma lei complementar irá determinar o patamar razoável da dívida pública a longo prazo (novo art. 163, VIII) pelo qual a política fiscal do governo será coordenada (novo art. 164-A). Portanto, ao lado do Teto de Gastos, um nível “sustentável” de endividamento servirá como índice para a elaboração do orçamento e o gerenciamento das despesas.
Para verificar o cumprimento dos objetivos fiscais, a PEC assinala a criação do Conselho Fiscal da República como uma espécie de quarto poder, situado ao lado dos outros três no capítulo “Da Organização dos Poderes” da Constituição (novo art. 135-A), formado pelo presidente, os presidentes do Congresso, o presidente do STF e do TCU, entre outros.
É extremamente perigoso sujeitar os direitos sociais ao ambíguo equilíbrio fiscal (conceito diferente para um economista ortodoxo ou heterodoxo, por exemplo). O que não significa que desconsidero a sanidade das contas públicas, mas que enxergo os direitos sociais como o que deve inspirar o controle das demais despesas, e não o contrário.
Além de que, se a proposta inicial do governo era flexibilizar o orçamento, a estipulação de mais uma “âncora fiscal” enrijece ainda mais o orçamento.
Conclusão
A proposta possui pontos positivos, como tentei mostrar, sobretudo no que diz respeito a revisão do Estado, muito inchado e dispendioso. O corte pela metade dos subsídios é importante para coibir o patrimonialismo apregoado no Estado. As verbas do pré-sal aos Estados, somado a exclusão dos fundos e municípios disfuncionais, fornecerão maior elasticidade ao orçamento. A questão é que esses aperfeiçoamentos são limitados quando comparados aos dispositivos maiores das PECs.
Os efeitos imediatos do corte salarial de 25% dos servidores é excessivamente oneroso, principalmente se lembrarmos dos pequenos funcionários públicos (é normal que lembremos apenas dos que estão no topo). Abrir mão do BNDES, além de estipular novas regras fiscais que limitam a expansão dos gastos mesmo quando o gasto contra-cíclico é importante, significará retardar ainda mais a retomada do crescimento.
Ao complementar o artigo 6º da Constituição que versa sobre os direitos sociais, a PEC dá a entender que as causas das dificuldades financeiras são os direitos. Na verdade, sequer realizamos o Estado de Bem-estar social que a Constituição prescreve, e é essa aspiração que corre o risco de ser deixada de lado. Não será dessa vez.