As base do programa econômico contra o vírus e a recessão
Quando a crise aperta, os adultos voltam à sala… ainda bem. Enquanto Bolsonaro resistia à ideia de trazer os brasileiros das regiões afetadas de Wuhan, Rodrigo Maia correu e aprovou a legislação específica contra o Coronavírus (Lei nº 13.979/2020) que garantiu, além da quarentena aos repatriados, outros itens como a compra de equipamentos de saúde sem licitação e a falta justificada aos doentes. Isso, no começo de fevereiro, quando o vírus agitava menos que as prévias de carnaval.
Os comunicados serenos de Luiz Henrique Mandetta, ministro da Saúde, surpreendeu quem se acostumou com Weintraub e Damares. Mesmo que o presidente insistisse que “o coronavírus é muito mais fantasia”, Mandetta não mediu esforços para estabelecer protocolos de proteção à população e até mesmo a reconvocar os médicos cubanos, expulsos por Bolsonaro no começo do governo, para atuarem na saúde básica em todo o país.
Quem melhor copiou o chefe, olhem só, foi Paulo Guedes. Após umas semanas de treinamento intensivo — em que zombou das “empregadas domésticas indo para Disney” e achincalhou os funcionários públicos de “parasitas” — o ministro da Economia disse que bastaria não mais que os R$ 5 bilhões, recém-transferidos via emendas parlamentares para o SUS, para conter o vírus e assim “o Brasil pode crescer 2% ou 2,5% com o mundo caindo”. Seria cômico se não fosse letal.
Na última segunda (16), a equipe econômica finalmente saiu da letargia e anunciou medidas positivas: outros R$ 4,5 bilhões do DPVAT para o SUS; a antecipação do 13º do INSS; os recursos não sacados do PIS/PASEP postos à disposição para saques no FGTS; o adiamento do recolhimento de impostos (FGTS, Simples e Sistema S) das empresas; e mais R$ 3 bilhões remanejados no orçamento para o Bolsa Família.
Sem dúvida foi um avanço, mas ainda muito pouco frente ao tamanho do buraco. Para começo de conversa, o SUS não pode receber o dinheiro a conta-gotas e um montante digno do desafio já deveria ter sido anunciado. O foco no INSS, por sua vez, só beneficia os mais velhos e ainda assim exclui os mais pobres que recebem o BPC e não tem direito ao 13º. Já os repasses via FGTS acaba omitindo os 46 milhões de trabalhadores informais (11 milhões sem carteira assinada e 35 milhões de MEI e contra própria).
A medida mais positiva diz respeito ao Bolsa Família — programa que não exige carteira assinada e auxilia famílias cujos filhos estarão desassistidos sem a merenda escolar — embora a quantia tão pouco seja suficiente para suprir a fila de mais de 3 milhões de pessoas à espera do benefício. E mais do que isso: será preciso um programa integrado ao Bolsa Família que não apenas alcance as famílias já vinculadas, mas garanta uma renda básica aos informais e desassistidos de qualquer auxílio (uma boa parte incluídos nos 36 milhões que estão no Cadastro Único e não recebem Bolsa Família).
O alívio tributário às empresas, por sua vez, pode ser útil em evitar demissões em massa e até mesmo falências em setores mais afetados (transportes, turismo e hotelaria). No entanto, os impostos postergados terão que ser pagos mais à frente, não é verdade? O montante transferido ao Bolsa Família já estava no orçamento, o 13º do INSS não será mais distribuído no final do ano e, não menos importante, a subtração dos recursos do FGTS tornará impossível qualquer nova rodada de liberação dos mesmos (tal como ocorreu no último semestre).
Ao anunciar as medidas, Paulo Guedes disse com orgulho que “tudo isso está sendo feito sem espaço fiscal”. Em outras palavras: nenhuma dessas medidas representa recursos novos. Por isso, numa economia que já vinha sofrendo pela contração do gasto público, é óbvio que o impacto no curtíssimo prazo é insuficiente para enfrentar a epidemia, e nem tampouco prepara a economia para a queda da atividade econômica que virá na esteira da epidemia.
Sem atentar para a gravidade da situação, a equipe econômica não percebeu que a garantia da agenda reformista a médio/longo prazo depende, antes de tudo, de flexibilizar a austeridade no curto prazo para que possamos evitar uma recessão mais dura que o necessário.
A economia brasileira vive uma insuficiência de demanda bem atestada pela inflação abaixo da meta há três anos e a elevada capacidade ociosa (desemprego e máquinas paradas).
De um lado, a inflação abaixo da meta há três anos e a elevada capacidade ociosa (desemprego e máquinas paradas) garantem que a economia vive uma insuficiência de demanda. Basta lembrar, por exemplo, como o estímulo ao consumo pela liberação dos saques do FGTS garantiu uma reação robusta da economia no último semestre, posto que, se a economia está aquém do pleno-emprego, é a demanda agregada que determina o PIB. Do outro lado, os juros baixos e a estabilização da trajetória da dívida como efeito da reforma da Previdência garantem que temos, sim, espaço fiscal para aumentar os gastos públicos no curto prazo.
Felizmente, formou-se um consenso mundial em torno do papel ativo que o Estado deve assumir diante da crise — tanto em seu aspecto sanitário quanto econômico. Quem melhor vocalizou isso foi o notório Gregory Mankiw — economista liberal e ex-conselho de George W. Bush — quando afirmou em artigo recente: “Há momentos para se preocupar com a crescente dívida do governo. Este não é um deles.”
Aqui no Brasil não é diferente. Com exceção do ortodoxismo de Paulo Guedes que ainda crê na aprovação das reformas estruturais como única saída para o crescimento, o debate entre os economistas está acirrado em torno do modo de contrair os novos gastos. Mais especificamente: se devemos ou não manter a regra do Teto de Gastos que fixa um limite nominal para as despesas públicas.
Os liberais sociais — e aqui me baseio livremente nas ideias de Armínio Fraga e Samuel Pessôa — estão preocupados com a letargia da economia embora indispostos a abrirem mão do equilíbrio fiscal representado pelo Teto de Gastos. Eles têm defendido o aumento maciço dos gastos para combater o vírus e amenizar seus efeitos sociais, sugerindo que sejam implementados como crédito extraordinário, visto que assim qualificados não se submeteria ao limite do Teto de Gastos (art. 107, § 6º do ADCT), o qual permaneceria vigente para os demais gastos não-extraordinários, incluindo investimentos.
A única coisa que precisaria ser alterada seria a meta de resultado primário — diferença entre as receitas e as despesas do governo no exercício anual — da qual as despesas extraordinárias não estariam excluídas. Caso não fosse alterada, qualquer nova despesa deveria equivaler a um contigenciamento proporcional de outra despesa já estipulada, o que significa que outras áreas do governo seriam afetadas pelos cortes. No entanto, ontem (17) o presidente anunciou que reconheceria o estado de calamidade pública, vigente até o final do ano, valendo então o disposto no art. 65 da Lei de Responsabilidade que afirma “na ocorrência de calamidade pública (…) serão dispensados o atingimento dos resultados fiscais”, excluindo a exigência quanto a meta primária.
De modo resumido: a meta fiscal não precisa mais ser respeitada, permitindo que o governo aumente os gastos sem combiná-los a contingenciamentos. Por outro lado, considerando que o Teto de Gastos está mantido, somente as despesas compreendidas como extraordinárias — isto é, voltadas exclusivamente ao combate da pandemia — estarão excluídas do limite do Teto, mantendo os investimentos sob o aperto fiscal (segundo o diretor do IFI, Felipe Salto, o governo teria ainda um espaço de R$ 26 bilhões no Teto).
Seria errado, entretanto, dizer que os liberais sociais propõem apenas isso. Enquanto Paulo Guedes ainda aposta todas as fichas nas reformas estruturais como alavanca dos investimentos privados, tais liberais já admitem que um impulso fiscal será inevitável, sobretudo após o PIBinho do ano passado. Como admitiu Rodrigo Maia na ocasião: “O setor privado sozinho não vai resolver os problemas (…) então acho que a grande mensagem do PIB que saiu hoje é exatamente que a participação do Estado também será sempre importante para que o Brasil possa crescer e se desenvolver”. Por isso, os liberais sociais propõem que as medidas emergenciais de saúde ocorram em paralelo ao trâmite da PEC Emergencial. Pois essa, ao permitir a redução de 1/4 da jornada e do salário dos funcionários públicos, abriria um espaço fiscal para que o Estado realizasse os investimentos que estimulasse a demanda no curto prazo.
Os social-desenvolvimentistas — desta vez tomo emprestado as ideias de Débora Freire e Esther Dweck sem prejuízo das autoras — não se opõem ao aumento das despesas médicas como gastos extraordinários que furam o Teto e independem da meta fiscal. Pelo contrário, assim como os liberais sociais, acreditam que o ministério da Economia está demorando a tomar as medidas cabíveis que envolvam a liberação das verbas.
A discordância maior entre liberais e desenvolvimentistas diz respeito a viabilização dos gastos para os investimentos anti-cíclicos. Os economistas desenvolvimentista julgam que a PEC Emergencial seria contra-producente numa economia que já está sofrendo por demanda insuficiente. Afinal, uma vez que contrai o salário dos servidores públicos, a PEC acarretaria um choque de demanda negativo, sem falar na indefinição a respeito de quais jornadas serão cortadas e, ainda pior, na deterioração dos serviços públicos que prejudicam principalmente os mais pobres.
Sendo assim, saída estaria numa flexibilização do Teto de Gastos que permitisse o aumento dos investimentos, sobretudo em infra-estrutura. As variáveis dentre as flexibilizações são muitas: a revogação completa; a suspensão pelo prazo de dois anos; a retira dos investimentos do limite do Teto.
Estou entre os que defendem essa última opção: que o Teto seja flexibilizado para permitir que os investimentos não sejam pressionados no momento que a economia sente falta do combustível dos gastos públicos.. Para que não interpretem a cláusula que retiraria os investimentos como raio em céu azul, a Regra de Ouro, presente na Lei de Responsabilidade Fiscal, já prevê esse mecanismo que permite a emissão de dívida desde que seja para investimentos
Penso que o problema do Teto não é o limite em si — o próprio ministro da Fazenda de Dilma, Nelson Barbosa, admitiu que cogitava uma medida semelhante — mas o desenho institucional proposto pela equipe econômica de Michel Temer. Os erros incluem o cálculo de progressão dos gastos com Saúde apenas pela inflação; a vigência da regra fiscal pelo prazo exagerado de 20 anos; a vedação de elevação do limite mesmo em caso de entrada de novas receitas com privatizações ou crescimento econômico. Considerando que o momento é tumultuoso, não acho que seja a hora de discutir o Teto em todas as suas nuances, limitando-me a discutir a injustificável contração dos investimentos. Assim como o governo fez ano passado quando colocou uma cláusula no Teto para que os repasses do leilão do petróleo para os Estados ocorressem por fora do Teto (art. 3º da EC 102/2019), está mais que na hora de uma flexibilização que revigore o papel do Estado brasileiro em tempos de crise.
Minha ideia é semelhante a que os economistas Fabio Giambiagi e Guilherme Tinoco defenderam em artigo recente quando discutiram um modelo de teto duplo: um subteto para as despesas correntes e outro teto para os dispêndios totais que incluiriam os investimentos públicos. À diferença dos autores, o teto duplo que proponho começaria a vigorar desde já e não somente em 2021, além de contar com uma folga maior para os investimentos no momento da promulgação (no caso de Giambiagi e Tinoco, a diferença inicial entre o subteto e o teto é de R$ 55 bilhões).
Através da estipulação de um teto para os investimentos públicos, não deixaríamos de reafirmar o compromisso com a solvência intertemporal do governo, sem que o risco-país nem a taxa de juros sejam duramente impactados. Refrearíamos o receio de que a política fiscal perderia a linha tal como ocorreu com as desonerações realizadas pelo PT diante da crise de 2008. E também fecharíamos brechas para contabilidades criativas e pautas bombas, não raras em tempos de atrito entre Executivo e Congresso, como provou a aprovação intempestiva do aumento de R$ 20 bilhões nos gastos com o BPC.
Se é certo que as obras de infraestrutura às vezes demoram a sair do papel, poderíamos começar pela conclusão das obras paralisadas e a reparação dos equipamentos públicos deteriorados pela falta de manutenção. Em paralelo, devem ocorrer outras ações imediatas que não requerem espaço fiscal — e sim decisão política — como a reativação do Minha Casa Minha Vida junto aos bancos públicos e a aceleração do programa de concessões — desta vez apoiado pelo BNDES — principalmente dos setores menos subordinados ao ciclo econômico de curto prazo como as concessões de 5G e de gás e energia. Lembrando ainda da sugestão do ministro Dias Toffoli de que as empreiteiras poderiam pagar suas dívidas com a União por meio da finalização de obras (estradas, creches, passarelas de ônibus, etc)
As soluções econômicas estão na mesa. Mesmo para quem acredita piamente nas reformas — e mesmo eu julgo que as reformas tributária e administrativa serão fundamentais para o incremento da produtividade — é bom lembrar que uma recessão pode deflagrar uma “fadiga de reformas” em que o cavalo de pau da política econômica será ainda maior.
O que falta, no entanto, é a consciência política do presidente em implementá-las. No melhor dos mundos, a atuação do ministro da Saúde poderia convencer Bolsonaro sobre a importância de bons quadros — que podem ser encontrados inclusive dentro de partidos — incentivando uma minirreforma ministerial que melhorasse a relação entre o Executivo e o Congresso. No entanto, é lógico que não esperamos o bom senso de alguém que passou os últimos dias criticando a fraude das urnas; fritando o ministro que tem a melhor interlocução com o Congresso (general Ramos); e participando de manifestações contra o Congresso e STF.
Será preciso que a população encontre meios de atestar que a nossa indignação é maior que a insanidade dos que fizeram aglomerações e desacreditaram da epidemia no último domingo. Só assim, o presidente será forçado a tomar medidas estejam à altura do desastre que nos aflige.