As raízes econômicas e o futuro do Outubro chileno

Rodrigo de Abreu Pinto
7 min readOct 26, 2019

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Quando Bolsonaro escolheu o Chile como destino da primeira viagem no continente, dava cabo às constantes referências do seu ministro da Fazenda, Paulo Guedes. Sempre que precisa ilustrar o que planeja ao Brasil, Guedes recorre ao modelo chileno, para então sugerir isso aqui virar o Chile.

Se depender dos elogios de Bolsonaro ao general Pinochet, até faz sentido. E foi isso que impeliu os estudantes chilenos a organizarem uma manifestação contra a presença do presidente brasileiro no país. O episódio acabou se tornando o ensaio para o levante que agora incendeia as ruas contra as medidas do presidente Sebastian Piñera.

Pensando bem, a política econômica de Paulo Guedes pode mesmo fazer isso aqui virar o Chile.

Para entender o que está acontecendo no Chile, a primeira reação é comparar às manifestações quase simultâneas do Equador. Nesse último caso, é mais fácil aceitar que o reajuste de 123% no preço dos combustíveis desencadeou a revolta. Por outro lado, no Chile, como explicar que o aumento de apenas 3,7% do bilhete do metrô tenha estourado os protestos?

Até então, como gosta de lembrar o ministro Paulo Guedes, o Chile seria um estranho exemplo de país latino-americano que deu certo.

De fato, para começo de conversa, o desempenho do Chile no combate à pobreza chama atenção. Desde o fim da ditadura em 1989, quando o país então se recuperava dos choques do petróleo e da dívida externa, a pobreza do Chile caiu continuamente de 68% para 11,7% entre 1990–2018 segundo dados da Cepal. Para se ter uma ideia, apenas Chile e Uruguai tem taxa de pobreza inferior a 15% na América Latina.

Os programas de transferência e combate à pobreza, inexistentes durante a ditadura e essenciais às melhorias sociais, foram viabilizados pela eficiente integração do Chile às cadeias de comércio globalizadas. O país aproveitou a expansão econômica da China (principal destino dos produtos chilenos) e se consolidou como principal exportador de cobre do mundo, além de produtos como pescados, frutas e vinhos. O resultado foi uma balança comercial favorável, sobretudo a partir dos anos 2000, com a constante entrada de dólares, responsável pela estabilização do câmbio do país.

Desafiando a liberalização da economia chilena, a dependência ao cobre induziu um forte e inteligente controle sobre a commodity. Em primeiro lugar, manteve-se a propriedade estatal da Codelco, nacionalizada por Salvador Allende e que produz um terço do minério chileno. Por fim, além de financiar parte dos gastos públicos com os lucros da Codelco, o governo taxa pesadamente as empresas privadas do cobre (produto em que o país tem uma grande vantagem competitiva), o que garante os superávits primários e, em contrapartida, pode abrir mão da tributação sobre os produtos estrangeiros ao aplicar uma redução unilateral das tarifas de importação. É isso, aliás, que diferencia o Chile dos países do Mercosul que possuem tarifas comuns de importação. Ao menos em teoria, essa abertura comercial tem efeitos positivos sobre a conservação da inflação (já que os produtos internacionais são importados a custos menores), o aumento da qualidade de vida e, por fim, a tecnologização do setor de serviços que emprega quase 70% dos trabalhadores chilenos.

Ao fim e ao cabo, o país andino cresceu em média 5% ao ano entre 1987 e 2019, enquanto a dívida bruta do país permanece baixa, em torno de 25% do PIB. Olhando assim, como afirmou o presidente Sebastián Piñera ao Financial Times, “Chile looks like an oasis because we have stable democracy, the economy is growing, we are creating jobs, we are improving salaries and we are keeping macroeconomic balance”.

No entanto, quem fala assim conta apenas uma parte da história, e não é à toa que a entrevista foi publicada dias antes do início dos protestos. O Chile continua padecendo de outros problemas — dentre os quais, a desigualdade é o principal. Ou seja, assim como o Brasil, o Chile aproveitou o boom das commodities para reduzir a pobreza, mas não a desigualdade. Segundo um relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) de 2017, o 0,1% mais rico da população detém 19% da renda do país; o 1% fica com 33%; enquanto o 5% guarda incríveis 51%.

Dentre os países da OCDE, o Chile é quem possui a maior desigualdade. Ademais, no Relatório de Felicidade Mundial de 2019 da Gallup, o país ocupa apenas a 98º quanto a liberdade de escolher livremente o rumo da vida pessoal, embora esteja em 48º relativamente ao PIB. Para tanto, o Estado chileno não guarda apenas a constituição dos anos Pinochet, mas práticas patrimonialistas como os elevados salários dos parlamentares que superam em 4,7 vezes a média mundial (um deputado chileno ganha cerca de 60 mil reais por mês), os recentes casos de corrupção e as evasões fiscais que salvaguardam os altos rendimentos da classe financeira.

Fica claro, portanto, como crescimento econômico não é incompatível com manutenção da desigualdade social. Em bom português: índices macroeconômicos, sozinhos, é muito pouco para uma população que gasta boa parte do salário com serviços básicos. Mesmo em setores que o público teria forte interesse em possuir acesso universal, como saúde e educação, as empresas privadas exercem domínio sob a lógica da mercantilização que, na prática, inviabiliza o acesso para frações consideráveis da população.

Por isso, mesmo que se diga que o salário mínimo é alto para os padrões do continente (US$423), ainda assim é pouco para o custo de vida no país. Segundo o Instituto Nacional de Estadísticas de Chile, 50% dos trabalhadores chilenos recebem menos de US$423 por mês — ou seja, apenas um pouco acima do salário mínimo — e muitos dos quais são trabalhadores informais, os quais estão crescendo e já correspondem a um terço do total da mão-de-obra chilena.

Observando o panorama geral, se não bastasse o salário insuficiente para cobrir os custos de vida (relativo a ausência de serviços públicos e a tributação regressiva baseado no consumo), muitos desses trabalhadores custearam a universidade via crédito subsidiado (“vale-educação”) e possuem vultosas dívidas para quitar. Outros terão que se mudar para bairros afastados porque o preço do aluguel está subindo mais rápido que o salário. E ainda há aqueles que sofrerão futuramente por não terem economizado ao longo da vida para, uma vez na velhice, receberem uma aposentadoria minimamente digna — pelos dados do Instituto Nacional de Estatísticas do Chile, o país tem a maior taxa de suicídio na velhice da América Latina.

Nesse cenário de aumento da informalidade e mercado de trabalho precarizado, não é difícil prever que o poder de barganha dos trabalhadores estaria às favas. Ao mesmo tempo que o neoliberalismo flexibiliza as relações de trabalho, também reforça a desagregação individualista e macula a vontade orgânica de classe, em torno da qual se organizaram os movimentos históricos de contestação.

Os últimos anos, no entanto, revelaram uma forma de protesto que já não depende apenas do trabalho enquanto dimensão elementar de politização. Como as primaveras ensinaram, as revoltas se dão, ao menos inicialmente, mais desorganizadas e com forte mobilização pelas redes sociais, geralmente impulsionadas por alguma “violência” concreta e cotidiana — não por outro motivo, os centavos dos transportes públicos foram centrais no Junho brasileiro e agora no Outubro chileno. O que importa, acima de tudo, é atentar contra as condições da vida social e, não menos importante, atravessar a multidão e viver uma experiência coletiva cada vez mais rara. Contra o primeiro-ministro que sugeriu aos chilenos acordar mais cedo (“madrugar”) para comprar o bilhete promocional no raiar do dia, os manifestares resolveram dormir mais tarde ao desobedecerem o toque de recolher imposto pelo governo.

O caso chileno, no mais, tem um ingrediente extra ligado a recusa dos jovens em acatarem qualquer coisa que recapitule a ditadura militar (como ficou claro no protesto contra Bolsonaro). Se Walter Benjamin dizia que “o passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção”, é isso que os chilenos redescobriram quando assistiram Piñera decretar o estado de emergência e ordenar os exércitos nas ruas. As manifestações ganharam força partir dali, isto é, no momento em que a memória social foi assumida nas ações contra a precarização da vida presente. “Pela primeira vez, depois da ditadura, os chilenos perderam o medo dos militares”, afirmou Marta Lagos do Latinobarómetro.

Os manifestantes terão três eventos sediados no Chile para pressionar o governo — a Conferência do Clima da ONU, a reunião da Cooperação Econômica Ásia-Pacífico e a final da Copa Libertadores da América. O presidente Piñera já anunciou que irá propor a diminuição da energia elétrica e o aumento das pensão, além de convocar o Conselho de Direitos Humanos da ONU para avaliar a atuação dos militares nos protestos. Mesmo assim, parece pouco frente as outras demandas, ainda mais progressistas, que os protestos incitam — redução da jornada de trabalho de 45 para 40hrs, reforma tributária e aumento dos gastos sociais do Estado. Como bem disse a própria primeira-dama num aúdio vazado: “vamos a tener qué disminuir nuestro privilegios y compartir con los demás”.

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Rodrigo de Abreu Pinto

Nascido em Recife. Formado em filosofia pela FFLCH-USP. Mora no Rio de Janeiro e estuda direito na PUC-Rio.