as reformas e A Reforma
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Inicio uma série de artigos em que tratarei aspectos da reforma da Previdência do governo Bolsonaro. A partir de agora, pretendo acompanhá-la ao longo dos seus desdobramentos nas duas casas do Legislativo.
Antes de entrar na discussão propriamente dita, examinarei brevemente as emendas constitucionais e leis ordinárias que modificaram o desenho original da Previdência tal como estipulada pela carta de 88. Pretendo demonstrar como a proposta de Bolsonaro perfaz e radicaliza as alterações anteriores, desta vez as condensando numa só reforma, motivo pela qual é a de impacto dentre todas.
Como é fácil prever, a principal justificativa das reformas foi a urgência de frear o crescimento das despesas previdenciárias. A explicação mais óbvia é que os brasileiros passaram a viver mais e ter menos filhos, degradando a proporção entre contribuintes e aposentados. No entanto, esse argumento não elucida a guinada acelerada dos gastos desde o início, o que gerou a necessidade de reformas prematuramente. A verdade é que a Constituição de 88 gerou efeitos imprevistos que colocaram em xeque o superávit do sistema. Por exemplo: quando nivelou o piso do Benefício de Prestação Continuada (BPC) de acordo com o salário mínimo, as solicitações ao benefício subiram vertiginosamente. De modo semelhante, quando a Constituição estabeleceu o mesmo piso para a Aposentadoria Rural e diminuiu a idade mínima em 5 anos, aumentaram os pedidos dos trabalhadores rurais. Em ambos os casos, a consequência foi o aumento as despesas da Previdência aquém do previsto pelo legisladores.
Nas décadas anteriores à Constituição, quando o Brasil possuía uma estrutura etária mais piramidal e o sistema previdenciário era superavitário, aqueles excedentes não foram poupados em vista do custeio das aposentadorias no futuro. Basta lembrar como os militares utilizaram a verba das contas da previdência para financiar obras colossais como a Ponte Rio-Niterói, a Transamazônica, a Usina de Itaipu. Desde a década de 90, à medida que os déficits foram aparecendo, os governos adotaram duas soluções: 1) a criação e elevação de impostos (contribuições sociais) que incrementam as receitas da previdência (Cofins, PIS/Pasep, CPMF, CSLL); 2) a realização das sucessivas reformas de modo a aumentar a arrecadação e diminuir as despesas.
A primeira reforma ocorreu em 1993 durante o governo de Itamar Franco. A Emenda Constitucional nº3 criou a contribuição dos servidores públicos, participantes do Regime Próprio de Previdência Social (RPPS). Até então, os servidores se aposentavam por tempo de serviço mas sem idade mínima e critério contributivo (alíquota). Não existia, propriamente falando, um regime de previdência para os servidores, pois “a aposentadoria correspondia, sob o prisma do Tesouro, a um tipo de continuidade do serviço público”, como descreveu Paulo Tafner. Somente a partir da EC nº93, as aposentadorias e pensões não seriam mais custeadas somente pelos recursos da União, mas também pelas contribuições dos servidores, tal como já ocorria no Regime Geral de Previdência Social (RGPS).
Em 1995, Fernando Henrique Cardoso propôs sua reforma cujo processo de tramitação constituiu um dos capítulos mais curiosos da Nova República. A proposta foi enviada junto a outras várias emendas, reunidas em um mesmo pacote. Enquanto as emendas referentes a flexibilização de monopólios e abertura comercial passaram em um semestre, a EC nº20 foi aprovada após 38 meses de discussões. O principal objetivo da reforma era desacelerar o crescimento das aposentadorias por tempo de serviço por meio do aumento do tempo de contribuição e da fixação de uma idade mínima para tais aposentadorias, tanto em relação ao RGPS quanto ao RPPS.
No regime dos servidores públicos, conforme prescrevia a Constituição, a aposentadoria proporcional era concedida para quem completasse pelo menos 20/30 anos de serviço. Para a aposentadoria integral, o servidores precisava cumprir 30/35 anos de atividade. Não possuía, entretanto, idade mínima para obtenção do benefício. A partir da EC nº20, firmou-se que os novos ingressantes precisariam atingir a idade mínima de 55/60(mulher/homem) para se aposentarem pelo tempo de contribuição. Para os que já eram contribuintes no momento da reforma, a idade mínima foi fixada em 48/53 e mais o pedágio (20–40%) sobre os anos restantes até atingir o novo piso.
Em relação aos aposentados do INSS, FHC não conseguiu instituir a idade mínima em razão do lendário voto errado do deputado Antonio Kandir (PSDB-SP), correligionário da reforma mas que apertou abstenção e não corrigiu até o final da votação. Não obstante, o presidente tucano realizou duas alterações de grande impacto no regime geral. Em primeiro lugar, desconstitucionalizou a fórmula de cálculo do valor do benefício, o que permitiu que a Lei nº9876, promulgada no ano seguinte, criasse o denominado Fator Previdenciário, uma nova fórmula de calculo que incluía diversas variáveis (como expectativa de vida, tempo de trabalho e idade) para medir quanto alguém receberia caso se aposentasse antes de completar 30/35 anos de contribuição. Comparando ao regime proporcional, caso o beneficiário se aposentasse com o mesmo tempo de contribuição, o cálculo do Fato Previdenciário resultaria em um benefício menor, numa tentativa do governo em desestimular as aposentadorias prematuras. Em segundo lugar, FHC impôs um teto para o valor dos benefícios. Como bem viu Elizeu Araújo, “a imposição de teto para os benefícios aponta para a opção feita pelo governo por um modelo em que o sistema público assegura apenas uma previdência básica”, reduzindo a importância do regime geral ao passo que abria espaço para a previdência complementar e privada baseada em regime de capitalização.
Na corrida presidencial de 2002, os principais candidatos discutiram a urgência de uma nova reforma da Previdência. Em sua Carta ao Povo Brasileiro, documento lançado às vésperas do pleito, Lula se comprometeu com inúmeras reformas em nome da estabilidade macroeconômica, incluindo a da Previdência. Foi assim que Lula, ao ser eleito, aprovou novas regras previdenciárias em uma velocidade impressionante, sobretudo se comparado ao enredo de FHC. Bastaram seis meses para aprová-la em dezembro de 2003, não sem antes a anuência à reforma rachar o partido do presidente e originar o PSOL.
As alterações da EC nº41 de Lula estiveram concentradas nas aposentadorias dos servidores públicos. Assim como FHC pôr o teto para o setor privado, Lula fez o mesmo no RPPS de tal maneira que, para os novos ingressantes, tornou o teto equivalente ao do INSS. A consequência foi não apenas o fim da integralidade, mas a criação de inúmeros fundos de pensão complementares, desta vez apoiados no salário médio elevado e baixo risco de desemprego do funcionalismo público. Entre outras mudanças importantes, a reforma reduziu o valor das novas pensões em 30% e adicionou uma taxação aos servidores inativos e pensionistas em 11% do valor que excede o teto do INSS.
Em 2005, o mesmo Lula faria outra reforma através da EC nº47. As mudanças foram pequenas, melhor compreendidas como um complemento ou correção à reforma anterior, levando em conta o escândalo do mensalão que explodiu naquele mesmo ano e o PT tentava conter os efeitos. De modo resumido, as duas principais alterações da reforma foram: o reestabelecimento da paridade entre os ativos e inativos que a reforma anterior rompeu; e a flexibilização das regras para aqueles servidores ativos na data da promulgação da reforma anterior, reduzindo o tempo que os mesmos precisariam cumprir para receber o benefício.
Os superávits sistemáticos que o país obteve durante os anos 2000 amorteceram as discussões sobre novas reformas. Em 2011, por exemplo, a Lei nº12.425 modificou a idade mínima para obtenção do Benefício de Prestação Continuada (BPC), reduzindo de 70 para 65 anos. Somente em 2015, dez anos depois da última emenda constitucional, as discussões sobre uma nova Previdência voltaram à ordem do dia, corroboradas pelo fiscalismo dogmático que dominaria a política econômica do Brasil desde então. Naquele primeiro ano do seu segundo mandato, o governo Dilma, enquanto não elaborava uma reforma mais substancial (como planejavam os ministros Joaquim Levy e Nelson Barbosa), tentou promover o ajuste fiscal pelo endurecimento das regras de concessão das pensões por morte (exclusão do caráter vitalício, novas condições referentes a idade da viúva e redução do valor do benefício). Uma vez que tais mudanças foram encaminhadas via Medida Provisória, quando foram apreciadas pela Câmara presidida por Eduardo Cunha, a medida foi profundamente alterada. O Congresso aproveitou a desconstitucionalização da fórmula de cálculo do regime geral, efetuada por FHC, e criou uma nova opção de cálculo. Além do Fator Previdenciário já existente, estabeleceu-se que o trabalhador do INSS pode optar pela nova regra 85/95, pela qual o trabalhador poderia receber a aposentadoria integral caso a soma da idade mais o tempo de contribuição atingisse 85/95.
Antes de sancionar a respectiva Lei 13.183, Dilma conseguiu apenas flexibilizar a fórmula 85/95 ao impôr um aumento gradual da idade mínima até o limite de 90/100 em 2026. A lei foi considerada uma pauta-bomba do Congresso contra Dilma justamente porque seus efeitos eram contrários à reforma fiscal preconizada pela presidente, apelidada portanto de Contrarreforma da Previdência. A nova regra permitiu que as pessoas não apenas se aposentassem mais cedo, mas em posse de um benefício mais alto do que pelo Fator Previdenciário, acelerando as solicitações de aposentadoria por tempo de contribuição. Assim sendo, por mais que as alterações nas pensões tenham gerado uma economia, as despesas previdenciárias cresceram — e pior, de maneira desigual, pois quem se aposenta por tempo de contribuição geralmente possui maior escolaridade, estabilidade e renda.
Ao contrapôr tal análise com a reforma proposta pelo governo (PEC nº6/2019), nota-se que Bolsonaro e Guedes radicalizam vários dos aspectos presentes em reformas anteriores, ainda assim encontrando espaço para proposições que ainda não apareceram desde que a Constituição estipulou as regras da Previdência.
Onde a atual reforma da Previdência radicaliza aspectos das anteriores:
- As reformas anteriores não fixaram uma idade mínima (para aposentadoria por tempo de contribuição) do regime próprio. Já a proposta atual, argumentando que vários daqueles trabalhadores se aposentam muito cedo, implementou o piso de 62/65 anos para ambos regimes de previdência.
- As propostas de FHC e Lula, ao estabelecerem o teto aos regimes geral e próprio respectivamente, permitiram a consolidação das grandes entidades estatais e privadas de previdência complementar. Agora, a intenção de Paulo Guedes em adotar o regime de capitalização para os novos ingressantes (ou mesmo para ativos que queiram migrar), promete reforçar ainda mais o papel daquelas companhias, semelhante ao ocorrido no Chile em que os fundos privados de pensão administram 69,6% do PIB do país.
- A desconstitucionalização realizada por FHC, em relação a fórmula de cálculo do benefício do regime geral, tornou possível que o Congresso adicionasse uma nova regra em 2015 sem a devida discussão sobre o assunto. Desta vez, a reforma almeja desconstitucionalizar toda a legislação previdenciária, o que pode facilitar imensamente novas alterações no futuro.
Onde a atual reforma da Previdência inova em relação às anteriores:
- O BPC e a Aposentadoria Rural permaneceram livres de maiores alterações desde que a Constituição determinou suas condições, a não ser para facilitá-los, como foi o caso da redução da idade do BPC em 2011 e a modernização do INSS que facilitou o acesso dos idosos e trabalhadores rurais. Em nome do trilhão, Paulo Guedes quer endurecer as regras de ambos benefícios, tanto através da redução do valor quanto da elevação da idade mínima.
Por fim, numa rápida observação sobre as condições de tramitação da reforma, a situação inicial de Bolsonaro era extremamente favorável: a oposição e os sindicatos enfraquecidos, a maioria dos governadores e deputados apoiando a reforma e uma opinião pública mais acostumada com o tema. No entanto, o governo se desidratou a tal ponto que torna cabível indagar se aquilo que seria Lula não está prestes a se tornar FHC. É certo que ao menos o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, aprendeu com a reforma de FHC e impediu que outras medidas corressem junto com a da Previdência (basta lembrar o seu atrito com Moro que também queria prioridade ao pacote anti-crime). O governo, todavia, não é capaz de aprender com os próprios erros, quem dirá com os erros dos outros (no caso da Previdência, para a nossa sorte, já que a proposta é absurda em vários quesitos). Como indagou um deputado do PSL numa das várias confusões do governo: “Quem vai garantir os votos que ele precisa no Congresso? Os deputados da sua base ou Olavo de Carvalho? O Fernando Henrique perdeu a reforma da Previdência [em 1998] por um voto. Quantos votos Bolsonaro tem?”