As tarefas urgentes não se resumem a Previdência
Sabemos que a reforma da Previdência se arrastará pelos próximos meses. Esta certeza é desoladora, não tanto pelo adiamento da solução fiscal, mas pela imaginação travada: um país que há três anos marca-passo e não discute outras tarefas urgentes para a retomada do crescimento. Não por outra razão, a cada vez que a reforma atual se parece mais com a de Temer, cresce o alarido de quem preferia tê-la votado no começo do ano, pois já teríamos virado a página.
Pessoalmente, acho que a Previdência é uma reforma cujo impacto exige reflexões mais duradouras, o que não significa que precise esterilizar todo o debate nacional. Suspeito que uma das razões para o reducionismo, é a promessa de que a reforma ensejará, por si mesma, o crescimento. Após o discurso do “combate aos privilégios” ter caído por terra com reforma dos militares, e a fixação fiscal de Guedes (“eu quero meu trilhão”) pouco persuadir, a nova estratégia de comunicação do governo planeja aposta no vínculo entre reforma → crescimento. Vale a pena investigar um pouco mais.
Pode-se dizer que existem três forma de acelerar o crescimento de uma economia, cada uma por meio de um gasto diferente: o gasto público e o gasto privado, esse puxado pelo investimento ou pelo consumo final. Vejamos como cada gasto será impacto pela reforma, de modo a medir o seu verdadeiro alcance.
1) Gasto público
É intuitivo pensar que, uma vez feita a reforma e estacado a sangria, existiria espaço fiscal para novos gastos. No entanto, a dinâmica inscrita pelo Teto de Gastos restringe esta possibilidade. Quando aprovaram o teto, a equipe econômica de Temer previa que a reforma da Previdência seria aprovada logo em seguida, ainda em 2017. A reforma não ocorreu assim como as despesas previdenciárias não pararam de crescer, espremendo ainda mais as demais rubricas do orçamento. Caso o Teto de Gastos não seja repensado, a reforma da Previdenciária permitirá não mais que a reposição das verbas cortadas até então, sem as quais a máquina pública corre o risco de mau funcionamento (basta lembrar problemas recentes na expedição de passaportes, patrulhamento das rodovias, compra de medicamentos).
Em razão da dificuldade de cortar despesas dessas áreas que já estão operando abaixo do ideal, os recursos para obras de habitação popular, estradas e escolas foram os mais prejudicados no contingenciamento anunciado mês passado. Naquele que seria o gasto que melhor estimularia a demanda e o emprego, os investimentos públicos representam não mais que 4% dos gastos, bem abaixo do 7,8% de 2012 (ano em que não se pode atribuir irresponsabilidade fiscal ao governo) e sem perspectiva de aumento. É improvável, portanto, considerando o orçamento engessado, que a reforma da Previdência recupere a capacidade de expansão fiscal do Estado, por mais que a estagnação.
2) Gasto privado via investimento
O principal efeito da reforma sobre os empresários diz respeito ao resgate da confiança. Na medida em que os agentes privados temem as consequências da insolvência do Estado (inflação, desvalorização da moeda, aumento dos impostos e do risco país), a reforma da Previdência os tranquilizaria, já que desaceleraria a tendência de crescimento do déficit. Daí em diante, uma vez tranquilos, os empresários retomariam os investimentos.
Este discurso do “resgate da confiança” tornou-se figura recorrente nos debates brasileiro desde o afastamento de Dilma, utilizado como justificativa econômica para o golpe. Em seguida, toda a agenda de Temer se baseou no mesmo argumento. O mercado não tardou em lançar o mesmo discurso para galvanizar apoio a Jair Bolsonaro.
Ao analisar uma série de gráficos do economista Ricardo Barboza sobre os últimos anos, o que chama atenção é que o resgate da confiança aconteceu. “Pode não ter sido como a gente gostaria (por exemplo, a Reforma da Previdência ainda não passou), mas os dados deixam muito claro que a confiança aumentou muito nos seus mais diversos aspectos”, conclui Ricardo. Destaco os seguintes gráficos:
Ora, se a confiança foi, em alguma medida, resgatada, por que os investimentos não seguiram a mesma lógica? Nas palavras de Ricardo: “ou a confiança não entregou o que prometeu, ou a confiança não tem a importância que o discurso sugere ou choques adversos ocorreram”.
Concordo que é irracional investir em condições de incerteza sobre o futuro. A questão é que a segurança quanto a solvência do Estado não é suficiente. Mais importante, para o empresário, é a expectativa de lucros no futuro em relação ao investimento presente. Em condições contrárias, quando não há demanda crescente pelas mercadorias, o empresário guarda dinheiro e não investe (ou melhor, investe em produtos financeiros), ainda que ocorram desonerações (Dilma) ou reforma trabalhista (Temer). De modo semelhante, não podemos esperar uma guinada nos investimentos através da reforma da Previdência, independente de que ela motive o Banco Central na redução dos juros (as taxas de juros já estão em nível histórico e nada aconteceu).
O mais provável é que a aprovação da reforma gere certa euforia nos mercados financeiros, mas a subida da bolsa e a valorização do real acarretam ganhos especulativos que não significa ganhos reais. Nada garante que as empresas cujas ações se valorizaram irão reinvestir os ganhos, nem que o real valorizado impulsionará os empresários a adquirirem equipamentos importados. O certo é que, se “a confiança é a forma mais barata de estímulo econômico” (como dizia Larry Summers), é mais certo ainda que esse estímulo é insuficiente. Resta um estímulo que venha de outro lugar.
3) Gasto privado via consumo
E com relação ao bolso dos consumidores? Primeiro, a reforma aumentará as alíquotas da contribuição. Segundo, uma vez que se trata de endurecer as regras, as pessoas se verão obrigadas a poupar mais para garantir a mesma aposentadoria de antes. Em outras palavras: a reforma significa um aumento de impostos e uma redução das transferências do Estado. Sendo assim, ambos efeitos, complementares entre si, são contracionistas, ou seja, reduzem ainda mais a demanda, inviabilizando o círculo virtuoso ligado ao consumo, investimento e emprego.
Esta consequência é tornada ainda mais intensa se lembrarmos que a demanda já está deprimida por conta de uma série de razões como o endividamento das famílias, o desemprego, o alto índice de informalidade (o informal consome menos porque tem menos segurança), a desaceleração do salário mínimo e dos gastos sociais do governo. Não é à toa que, das dez empresas que mais perderam valor na Bovespa, sete estão ligadas ao consumo.
Ao analisar os efeitos sobre os três tipos de gastos, conclui-se que não é correto associar reforma da Previdência e a retomada do crescimento. Aquela cumpre tão somente corrigir uma fração dos desequilíbrios fiscais do Estado, restando que outras atitudes sejam tomadas para ensejar o crescimento. Enquanto o governo Bolsonaro não faz isso, não é possível desprezar os custos políticos e sociais dessa atitude — inclusive nos termos da própria reforma, já que o regime de austeridade dificulta a aprovação de uma medidas impopulares.
O jornalista Valdo Cruz noticiou que Paulo Guedes estaria formulando “mecanismos para que empresas possam tomar crédito no sistema financeiro e alavancarem seus negócios, principalmente com investimentos”. Esta facilitação do crédito é importante, tanto por causa do spreads cobrados pelos bancos brasileiros, quanto pelo redução do papel do BNDES (no momento em que um mercado de capitais ainda não está consolidado). Não obstante, provavelmente não produzirá maiores resultados, até porque não se trata apenas dos custos, mas da própria falta de interesse em adquirir novas dívidas.
O tecido social brasileiro não aguenta mais esperar. De acordo com o documento do FMI divulgado semana passado, quase oito milhões de brasileiro foram empurrados para pobreza entre 2014 e 2017. Agora, soma-se 44 milhões de pessoas nesta condições. São família cujo endividamento cai em ritmo lento e o longo tempo fora do mercado de trabalho reduz as condições físicas e psíquicas. Por isso, o recente anúncio do 13º ao Bolsa Família é certamente o mais importante de Bolsonaro até então. Espera-se, contudo, que não seja somente uma panfleto dos 100 dias de governo, mas um indício de compreensão quanto aos retrocessos civilizatórios em curso. O próximo, portanto, seria combinar a reforma da Previdência com medidas compensatórias para acelerar a recuperação da economia e reverter as constantes quedas da expectativa do crescimento (o Itaú acabou de revisar para baixo de 2% para 1,3%).
A última vez que isso foi feito em 2017, com a liberação dos depósitos de contas inativas do FGTS, os resultados foram revigorantes. No entanto, o mesmo atalho não está disponível novamente. Para ser exato, a vigência do Teto de Gastos, ao excluir as demais possibilidades de ativismo do Estado, torna que somente as concessões do governo possam resultar em investimentos imediatos. Embora seja verdade que a agenda do ministério da Infraestrutura seja uma das únicas coisas que está funcionando, não se sabe quando os investimentos prometidos vão chegar, nem muito menos se irão comprar produtos de indústrias nacionais (as maioria das concessionárias são estrangeiras).
Estratégias de curto prazo não são meros atalhos com consequências limitadas, mas medidas necessárias porque o rasgo do tecido social pode travar de maneira ainda mais dramática o crescimento a longo prazo. Em lugar do esquema “previdência → crescimento → melhora do desemprego”, seria mais consequente pensar em “previdência + Melhora do desemprego → crescimento”, o que corresponde a um aumento de demanda sem risco inflacionário (elevada ociosidade e previsões de inflação abaixo da meta).
Considerando a insuficiência da demanda e a lentidão do mercado em reduzir a taxa de desemprego, é o Estado quem deveria despertar a economia. Para isso, é preciso, se não revogar o Teto de Gastos, já que poderia resultar numa alteração brusca da política fiscal, ao menos flexibiliza-lo. Antes de tudo, inserir uma regra pela qual o aumento das receitas possa elevar o limite do teto, permitindo que os recursos das privatizações em curso sejam canalizados para novos investimentos e a venda do patrimônio financie o consumo.
—
Esse é o 3º texto da série sobre a reforma da Previdência. Os anteriores podem ser conferidos aqui (01, 02).