Ataque a Soleimani: a guerra sem guerra de Trump
Se fosse três dias antes, certamente diríamos que o ataque dos Estados Unidos contra Qasem Soleimani, general e chefe militar do Irã, teria sido a mais significativa ação militar da década anterior. Agora, a década mal começou e o acontecimento nos deixa perplexos, mas cientes do novo tempo do mundo que então se abre.
Após a surpresa inicial, os analistas multiplicaram as possíveis razões da ação norte-americana:
— O benefício à indústria bélica e/ou o interesse no petróleo iraniano (as explicações de sempre).
— O apoio aos dois parceiros americanos na região, Arábia Saudita e Israel.
— O troco à Revolução Iraniana e ao fundamentalismo islâmico de modo geral.
— O anseio infantil de Donald Trump em esmagar o legado de Obama na política externa, que incluía o acordo nuclear com o Irã, o reatamento das relações com Cuba e o Acordo de Paris sobre o Clima — todos desmanchados por Trump.
Não precisamos excluir nenhuma dessas circunstâncias. Além do mais, quero destacar outra.
De uns tempos para cá, boa parte da sociedade americana se tornou crítica das aventuras militares do seu país, muito porque desemprego interno e trilhões de dólares gastos do outro lado do mundo não combinam. Embora o próprio Trump as tenha denominado de “guerras inúteis” e ordenado a retirada das tropas americanas da Síria, estamos diante de alguém que redescobriu uma velha finalidade da guerra: a manutenção do Império.
Quando veio ao Brasil em 2018, Rex Tillerson, então chanceler dos EUA, chamou atenção para o avanço da China e frisou que a região “não precisava de novas potências imperiais”. O fato é que a ascensão chinesa não é somente irremediável, mas tão forte a ponto de restaurar a bipolaridade do mundo que o fim da Guerra Fria encerrara. O ataque a Soleimani diz respeito ao propósito de Trump em certificar que, a despeito das aparências, America (ainda e sempre) First.
Se o alvo foi o Irã, também não foi à toa. Nem me refiro aos ataques iranianos que ainda vigem na memória dos americanos — os 52 diplomatas americanos mantidos reféns na embaixada em Teerã entre 1979–81 e o atentado terrorista do Hezbollah que matou 241 militares americanos em Beirute em 1983. Mais do que isso, ao lado da China e da Rússia, o Irã é quem mais desafiou a ordem de segurança estabelecida desde o fim da Guerra Fria, apoiando uma retórica belicista e financiando países vizinhos em disputas contra os americanos.
Atacar o Irã, portanto, corresponde a atentar contra o mais fraco e assim mandar um recado aos mais fortes — em especial, a China. Se a supremacia americana em termos estratégicos, tecnológicos e econômicos está ameaçada pelos chineses, Trump deu o passo decisivo para mostrar que militarmente não.
Daí, temos o drone; o ataque surpresa; a escolha do alvo; a ameaça no twitter logo após o ataque (“The United States just spent Two Trillion Dollars on Military Equipment.”). Tudo isso traduz a promessa de compelir o mundo à força — bem expressa em tecnologias militares — em função da qual o país estaria autorizado a gozar de direitos excepcionais nas relações internacionais. Dito de outro modo: manda quem pode, obedece quem tem juízo — provavelmente essa é a verdade histórica mais irretocável.
Em Necropolítica, Achille Mbembe escreveu que “a expressão máxima da soberania reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer”. A soberania, portanto, está nas mãos de quem decide quando e em quem atirar. E esse é o critério de desempate no momento que outras potências ameaçam a hegemonia norte-americana
A crítica dos cidadãos americanos às guerras dizia respeito, em larga medida, sobre as mortes e os custos. Mas o que Trump faz? Uma guerra sem guerra, isto é, sem front nem trincheira, sem mísseis porém drones, onde é possível atacar sem se tornar vulnerável e tudo é feito de modo técnico, impessoal e sem chamar atenção. Foi assim que Soleimani foi assassinado.
É interessante notar como, no contexto geopolítico, os Estados Unidos já não tem mais nenhum aliado incondicional (com exceção de Israel e Arábia) e mantém apenas acordos provisórios com outros países — e foi assim que recentemente abandonaram, sem maiores explicações, aliados militares como os egípcios e os curdos.
Assim como no mercado se privilegia a “liquidez” dos ativos (a facilidade de se desfazer deles a qualquer momento), a guerra também se dá de modo cirúrgico e localmente fugaz. A “paz”, tal como antes, continua uma “guerra sem fim”, mas já sem os dispêndios da política de gestão dos territórios conquistados, bastando atacá-los no instante X.
Ao garantir a “economia máxima”, a guerra sem guerra de Trump contorna as críticas quantos aos gastos e mortes militares. Ao mesmo tempo que o “massacre” reascendeu a chama dos nacionalistas americanos em pleno ano de eleição. Esse caos tem método.