Bolsonaro, os militares e os militarizados

Rodrigo de Abreu Pinto
6 min readMay 20, 2020

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Já se tornou uma máxima dos domingos de quarentena: aglomerações em frente ao Palácio da Alvorada que surpreendem embora saibamos muito bem quem é o presidente. Desde faixas pedindo intervenção militar até jornalistas covardemente agredidos, e o presidente, líder da algazarra, ameaçando geral — “chegamos no limite, não tem mais conversa, tá ok?”.

Três dias atrás foi a vez do grupo de paraquedistas militares saudarem energicamente o presidente. Só esqueceram que o presidente não faz flexão. Mais vexame que isso, somente o embuste da guarda pretoriana, trajando botas e boina vermelha, no mesmo momento em que o presidente está na beira do cadafalso.

Bolsonaro e os ‘militares paraquedista’ na rampa do Palácio da Alvorada.

Se, lá dentro, Bolsonaro corre atrás de cargos e verbas para aliciar o Centrão, aqui fora os grupos ‘militarizados’ já empunham as armas para defender o presidente — baixas patentes do exército, setores da polícia e milícias, além de empresários de segurança privada.

Bolsonaro lhes oferece vantagens que vão desde a ampliação do excludente a ilicitude até a recente revogação das regras de rastreamento de armas e munições, sem falar na legitimação da violência, encarnada nos discursos presidenciais à la Capitão Nascimento. Em troca, juram-lhe lealdade — “somos todos Bolsonaros”, os paraquedista bradavam na rampa da Alvorada.

A tarefa de mobilizá-los é do chamado gabinete do ódio cuja liderança operacional está nas mãos de Carlos Bolsonaro, mas a bússola ideológica é olavista. Uma das principais funções é gerar atrito entre as bases e a alta hierarquia das Forças Armadas, afinal, se os primeiros já são jacobinos, falta aos segundos também se tornarem, de uma vez por todas, mais bolsonaristas que militares.

O 03 já tweetou que “é muito mais valoroso conversar com um humilde inteligente soldado do que com um general que não apita porra nenhuma!”. Olavo de Carvalho anda oferecendo cursos gratuitos para policiais militares. Trata-se de agitá-los a ponto dos oficiais, uma vez pressionados, sentirem-se coagidos à mesma radicalização.

Dória vaiado e Bolsonaro ovacionado na formatura dos sargentos da Polícia Militar/SP.

É isso que explica o comportamento do general Villasbôas, pelo qual entrou na história como protagonista da eleição de Bolsonaro, quando chantageou o STF pela prisão de Lula. Como admitiria meses depois: “Ali, nós conscientemente trabalhamos sabendo que estávamos no limite. Mas sentimos que a coisa poderia fugir ao nosso controle se eu não me expressasse.” Enquanto os praças e alguns generais da reserva já eram convertidos ao bolsonarismo, os comandantes hesitaram até o limite, depois do qual, primaria a indisciplina, a fragmentação e a disputa entre as próprias fileiras.

Outro exemplo ilustrativo se deu na greve dos policiais militares do Ceará no início do ano. Ali, o coronel Aguinaldo de Oliveira, comandante da Força Nacional, designada para controlar a rebelião, dirigiu-se para os milicianos encapuzados ao final: “os senhores sairão daqui do tamanho do Brasil”. Assim selando o país da tirania miliciana que o presidente, figura máxima do sindicalismo militar, almeja instaurar através da partidarização das forças de segurança.

Greve dos policiais militares no Ceará. (Foto: Brasil de Fato)

É verdade que reação a pandemia foi só mais uma prova de que Bolsonaro governa “não pela administração pública, mas pela administração do ódio”, como diz Eliane Brum. A novidade, por outro lado, não está apenas na perda de apoio em parte da classe média, mas também na radicalização dos seus apoiadores — o que põe em vigilância qualquer aceno dos altos militares a favor de Mourão.

A última pesquisa do Datafolha aponta que tanto a aprovação quanto a desaprovação ao presidente cresceram durante a pandemia — ou seja, só diminuiu quem avalia o governo como ‘regular’. A radicalização, por sua vez, é ainda mais ostensiva na formação dos grupos paramilitares, integrados por militantes de Bolsonaro, como o ‘300 do Brasil’ acampado em frente ao Congresso, além de outros que partilham o neologismo ‘ucranizar’ em referência ao movimento nacionalista do país europeu que protagonizou massacres como o incêndio na sede do sindicato de Odessa com 40 mortes.

Integrantes do 300 do Brasil em Brasília. (Foto: Congresso em Foco)

Esta articulação tripla entre gabinete do ódio, forças de segurança partidarizadas e militantes armados torna a ameaça ubíqua e o risco de tenentismo põe em xeque as Forças Armadas à medida que ameaça a disciplina, o profissionalismo, o respeito à hierarquia — em suma, os valores que caracterizam o ethos do militar. Se é certo que não há nada que os militares temam mais que a desordem — ocasião em que as fileiras podem se desintegrar — são os setores bolsonaristas que recentemente se revelaram engenheiros do caos, sejam as baixas patentes (prisão de Lula), os policiais (motim no Ceará), as milícias (morte de Marielle Franco) ou os caminhoneiros (greve de 2018).

Não à toa, a principal razão para a demissão do general Santos Cruz, então ministro da Secretaria de Governo, foi criticar a ideologização que levaria a um impasse estratégico do governo, em especial dos ministros militares. Em outras palavras, o general antecipava um quadro de conflagração — orquestrado pelo gabinete do ódio e contra as instituições corruptas e anti-nacionais — em que os altos escalões do Exército pagariam o preço pela indiferença e não teriam alternativas senão duas opções: ficar nos quartéis enquanto os grupos armados destróem a democracia (como o recente caso da Bolívia) ou intervir a favor do presidente e assim consentir ao autoritarismo antes que as tropas o façam.

Só essa bolsonarização das bases explica a indecisão dos generais diante das condutas mais repugnantes do presidente que, bem ou mal, causam danos à imagem da instituição — embora as recentes benesses do presidente aos militares também afaguem (a reforma da Previdência exclusiva; o aumento de 10,9% nos gastos do Ministério da Defesa; o status de aliado americano extra-Otan, além do acordo de cooperação para o desenvolvimento de materiais de defesa e segurança).

Bolsonaro tenta cumprimentar o comandante do Exército e é recebido com toque de cotovelo.

O outro lado da história é que Jair Bolsonaro tem pouca liderança sobre os oficiais da ativa do Exército — e ainda menos sobre a Marinha e Aeronáutica, ambas que fizeram questão de assinar, pela primeira vez, a última nota do Ministério da Defesa em repúdio aos atos antidemocráticos. Os milicos sabem do pedágio que pagaram para reconquistar a confiança após a ditadura e boa parte não estaria disposta a qualquer aventura, sobretudo capitaneada por alguém como Bolsonaro, “um caso completamente fora do normal, inclusive um mal militar”, no já clássico comentário de Ernesto Geisel.

A questão, claro, é que ser ajuizado em comparação a Bolsonaro é muito pouco. Mas antes que cobremos mais altivez e provas democráticas dos generais (como se fosse questão de explicá-los como funciona a democracia), é preciso forçá-los nessa direção, Pois as cisões e indecisões entre os militares resultará que os mesmos, muito provavelmente, serão tragados pelo curso dos acontecimentos.

O futuro dependerá, de um lado, das forças democráticas formarem um movimento de massa que torne o preço de defender o governo muito alto (só o vídeo da reunião e as mortas da COVID não serão suficiente). Ou, do outro lado, da mobilização e terror propagado pelos grupos militarizados filiados ao presidente. Na ditadura militar também foi assim: por mais que alguns setores do Exército pregassem a restauração do poder civil sem demora, a inércia das forças progressista, ainda perplexas com o golpe, deu espaço para que os reacionários tomassem gosto pelo poder e não arredassem o pé.

Sabe-se que a guinada de Mourão não é solução para nada, mas a queda de Jair Bolsonaro serve a dois propósitos: 1) as forças milicianas estarão órfãs na conjuntura nacional; 2) o movimento pelo impeachment pode engrossar as fileiras progressistas para as lutas futuras.

Se a extrema direita tem interpretado a ambiguidade das Forças Armadas como motivo para a radicalização, as forças progressistas, ao contrário, estão apartadas e tolhidas às contas das próprias culpas.

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Rodrigo de Abreu Pinto

Nascido em Recife. Formado em filosofia pela FFLCH-USP. Mora no Rio de Janeiro e estuda direito na PUC-Rio.