Boom das commodities: do milagre ao caos

Rodrigo de Abreu Pinto
5 min readJul 28, 2021

“Alguns projetam um crescimento de 5% positivo esse ano. Se 5% é positivo e o ano passado foi 4% negativo, cresceremos 9%. É um milagre”, afirmou o presidente.

Superio Ficções (2016) de Guerreiro do Divino Amor

O comentário é estúpido e somos tentados a tomá-lo como burro, louco ou ambas as coisas. Mas falar assim despolitiza e, pior, exclui a responsabilidade do autor pela penúria que vivemos.

Por trás do comentário, revela-se a visão idílica que o presidente tem da economia brasileira em 2021. Uma vez associada aos comentários do ministro da Economia de que os mais pobres não sabem poupar, entendemos o mindset que inspira a ausência de uma agenda de recuperação da economia.

Bolsonaro e Paulo Guedes combinam a falta de liderança política e a incapacidade crônica de colocar qualquer programa de pé. Estão sempre à espera de um milagre. Já foi a reforma da Previdência. A redução história da taxa de juros. Agora esperam que a economia cresça como efeito automático do boom das commodities no mercado internacional.

Esse é o mal de quem interpretou o sucesso do lulismo como mera consequência do aumento do preço das exportações. Esperam milagres em lugar de assumirem que desenvolvimento econômico não ocorre por acidente. Reinterpretando o lulismo: não basta um boom das commodities, mas sim a habilidade em torná-lo a alavanca para realização de políticas de expansão econômica, como investimentos em infraestrutura ou programas de transferência de renda.

Cosmogonia Supercarioca Superficcional Animada (2016) de Guerreiro do Divino Amor

Sem isso, a expansão via commodities privilegia o setor do agronegócio, que é moderno e por isso intensivo em capital e não em mão de obra. Uma recuperação baseada em empregos depende da recuperação da indústria e serviços. Como a indústria brasileira atrofiou e não ganhou competitividade sequer com a desvalorização do real, dependemos essencialmente do setor de serviços.

Comércio, salões de beleza, oficinas, restaurantes, turismo… serviços, em suma, é justamente o setor que mais sofreu durante a pandemia pois depende da circulação de pessoas. Daí que muita gente acredite que bastará o avanço da vacinação e o relaxamento do isolamento para que tudo volte ao normal. Minha impressão, ao contrário, é que as pessoas já estão na rua, sendo que embora sem emprego e renda para consumo os serviços.

Atualmente, o Brasil tem 15 milhões de desempregados. 6 milhões de desalentados (desistiram de procurar emprego). E 33 milhões de subutilizados que possuem emprego mas gostariam de trabalhar mais, já que conseguiram apenas um bico ou, como chama o antropólogo David Graeber, bullshit jobs. São, no total, 54 milhões de pessoas vivendo a tragédia individual de produzir menos do que gostariam, o que se converte em tragédia social e econômica em vista do potencial produtivo desperdiçado.

Em lugar de crescimento econômico, o boom das commodities tem resultado no aumento do preço dos alimentos também, em especial pela desvalorização do real. A contradição é que os mais pobres, ao contrário dos mais ricos, consomem proporcionalmente mais alimentos do que serviços (que permanecem deflacionados), o que têm transformado o boom das commodities em mecanismo de concentração de renda.

InfraRio (2017) de Guerreiro do Divino Amor

Para combatê-lo, o Banco Central está agindo corretamente ao elevar a taxa de juros. Como mostrou estudo recente do Made-USP, a taxa de juros brasileira, até então reduzida em relação aos demais emergentes, era a principal causa da desvalorização do real que turbinou o preço dos alimentos.

O problema do aumento da Selic não é só que a sua queda representava uma conquista histórica da sociedade brasileira, mas que a política monetária era, ao menos até então, a protagonista na agenda do ministro Paulo Guedes. O mercado prevê que a Selic suba até 7% ao final do ano, revertendo parte do longo período de afrouxamento que levou a Selic de 14,25% em meados de 2016 para 2% no início de 2021.

Com o aumento dos juros, as famílias ficam obrigadas a ajustar o orçamento doméstico e evitar novas dívidas. Bem como as empresas que tem maiores dificuldades para financiar o investimento, tornando improvável uma retomada da economia liderada apenas pelos gastos privados.

Será preciso que a política monetária passe o bastão para a política fiscal, implicando o governo em medidas de estímulo a demanda no curto prazo para combater o desemprego. Outro estudo recente do Made-USP revelou a importância dos gastos públicos em 2020 pois, ao salvar as empresas e recompor o poder de compra das famílias, segurou a deterioração da relação dívida/PIB pelo aumento da arrecadação e a menor queda do PIB dentre os países da América Latina.

Desta vez, como estamos vendo no governo Biden, trata-se de combinar o estímulo à geração de empregos no curto prazo com a primeira etapa da agenda de combate às desigualdades e mudanças climáticas. Podemos começar, por exemplo, com um programa de reparo da infraestrutura pública deteriorada pela falta de um nível mínimo de investimento e a sua readaptação para uma economia verde, pois assim estimulamos as atividades de construção civil que não exigem demasiada qualificação e são intensivas em mão de obra.

O debate não deve ser sobre gastar ou não, mas em que gastar e como, em especial estabelecendo mecanismos de controle e avaliação sobre a qualidade, os custos e os benefícios dos investimentos públicos. Há boas propostas na mesa para a revisão das regras fiscais, como os economistas Fábio Giambiagi e Guilherme Tinoco que propõe uma alteração no Teto para abrir espaço para gastos com investimentos.

Se sair do buraco é totalmente possível, milagre seria apenas que o Executivo liderasse a retomada, ainda mais agora com a agenda de reformas ditada pela parte mais fisiológica do Centrão. Uma economia como a nossa não pode depender de milagres.

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Rodrigo de Abreu Pinto

Nascido em Recife, é formado em filosofia pela FFLCH-USP e em direito pela PUC-Rio.