Boulos e Erundina: derrota eleitoral e vitória política
Morei em São Paulo de 2014 até 2017. Participei de duas eleições na cidade, 2014 e 2016, onde a esquerda perdeu as disputas locais (governo e prefeitura) e Dilma quase tropeçou perante Aécio Neves. Pior que as derrotas eleitorais, no entanto, o fracasso político: mobilizações propriamente ditas só aconteceram às vésperas das eleições, momentos em que São Paulo foi sacudida por militantes de esquerda contra a derrota da presidente petista em 2014 e o colapso de Haddad perante Doria em 2016.
Mesmo de longe, notei que a campanha de Guilherme Boulos ganhou uma dinâmica que há muito não se via. Acho que o Brasil inteiro notou. Escrevi sobre o fenômeno um mês atrás e voltei a São Paulo para conferi-lo de perto nos últimos dias de campanha.
Panfletei em diferentes pontos da cidade. Participei de carreatas da Zona Sul até o centro. Esbarrei com vários amigos que estudaram comigo na USP, dos quais não tive tempo para matar as saudades mas tão logo notei uma coisa: pela primeira vez, desde Junho de 2013, autonomistas e integrantes de partido cerraram fileiras pelo mesmo compromisso político.
Por um lado, encontrei amigos que sempre desacreditaram do sistema partidário e via eleitoral, enfim, engajados na campanha e cientes da importância de articular as demandas libertárias com a luta institucional. Por outro lado, amigos que integram partidos tradicionais, antes apegados aos gabinetes como horizonte absoluto das decisões políticas, destacavam as assembleias territoriais, as plenárias temáticas e o orçamento participativo, mecanismos que extrapolam a política formal e estão incluídas no programa de Boulos e Erundina. Desfez-se, assim, a contradição entre a identidade antissistêmica de esquerda e o compromisso com a política institucional que outrora separou ambos os grupos e pavimentou o caminho do golpe sem resistência em 2016. Agora, ao contrário, bandeiras anarquistas, partidárias e de movimentos feministas e estudantis que desfilavam juntos na avenida Paulista na véspera da eleição. Foi a prova de que uma campanha eleitoral é capaz de se abrir para a energia dos movimentos de esquerda que eclodiram em Junho em 2013 uma vez que transformou a comunicação, os símbolos e as palavras de ordem sem abrir mão da radicalidade ética de esquerda que une esses grupos a despeito das estéticas distintas — “radical é haver, na cidade mais rica do país, gente obrigada a revirar latas de lixo para comer”, afirmou Boulos logo após a vitória no 1° turno.
Isso só foi possível porque a campanha superou o marketismo político à la João Santana — uma estratégia de ganhar eleição de cima para baixo — para abraçar o movimento próprio da sociedade civil como energia orgânica e propulsora da onda que alavancou a candidatura. Não que a campanha não envolvesse cifras consideráveis, mas os R$ 3,4 milhões gastos na campanha foram só o começo, pois o meio e o fim coube aos milhares que apanharam os panfletos, adesivos e bandeiras nos comitês de campanha para então se dividirem pela cidade. Estive algumas vezes no comitê de Santa Cecília e impressionou-me o volume de pessoas que passavam por lá, não à toa que a campanha de Boulos e Erundina tenha colorido a cidade muito mais que a de Covas, embora esse tenha gastado quase seis vezes mais (R$ 19,4 milhões). O verdadeiro golpe da pandemia na campanha de Boulos não foi a ausência no debate final em razão da doença, mas as exigências de distanciamento social que limitaram uma onda que poderia ter sido ainda maior.
Um desses amigos me lembrou que a figura de Boulos ganhou respeito entre os movimentos pela sua postura combativa desde Junho de 2013, em especial durante as manifestações contra a Copa de 2014 em que boa parte da esquerda, sobretudo petista, silenciou-se. Além desse, acho que há outros dois marcos da trajetória de Boulos que ajudam a entender a onda.
Em primeiro lugar, os militantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), onde Boulos milita há mais de 20 anos, participaram ativamente da campanha e induziram o enraizamento popular que faltava ao PSOL, até então só parcialmente preenchido pelo funcionários públicos e a juventude universitária. Diferente do mapa eleitoral da disputa entre Marcelo Freixo (PSOL) e Marcelo Crivella (PR) em 2016 — ou mesmo entre Doria (PSDB) e Haddad (PT) no mesmo ano — as principais vitórias de Boulos e Erundina foram Zona Sul e na Zona Leste, regiões periféricas da capital paulista que complexificam a tese de que o PSOL é um mero partido de elites.
Em segundo lugar, a lealdade de Boulos aos demais partidos de esquerda, não só quando fez uma campanha limpa e agregadora no primeiro turno, mas pela liderança na construção da Frente Povo Sem Medo que reuniu grupos partidários e movimentos sociais desde a luta contra o golpe de 2016 — talvez o melhor exemplo de unidade do campo progressista e de esquerda nos últimos anos. À isso se deve a rápida adesão — e principalmente sem mágoas ou corpo mole — dos demais políticos e militantes de esquerda à candidatura de Boulos e Erundina no segundo turno: mais do que a presença de Marina, Ciro, Lula e Flávio Dino na propaganda política, foi lindo ver Jilmar Tatto (PT), Orlando Silva (PC do B) e Marina Helou (Rede) implicados na campanha e participando das carreatas.
É verdade que os métodos bolsonaristas voltaram a funcionar, sobretudo no 2° turno, quando distribuíram fake news, acirraram a polarização e demonizaram os candidatos de esquerda na reta final. Contudo, a saída contra isso não está na aposta em candidaturas tão só pragmáticas e que gerem baixa rejeição — como tentou o PDT através de nomes Márcio França e Martha Rocha — mas de campanhas que apostem numa utopia renovada e com apelo emocional para mobilizar as pessoas às ruas, em especial os mais jovens. Se a maioria da juventude paulista votou em Boulos, é porque a campanha soube politizar a clivagem entre jovens e mais velhos nas pesquisas de aprovação quanto ao governo Bolsonaro. E o mais importante: fez isso não só através da memórias dos feitos das gestões de esquerda em São Paulo (Erundina, Marta Suplicy e Haddad), mas sobretudo pelo reencantamento com a identidade de esquerda e os afetos que a representam (a esperança, a imaginação, o combate às desigualdades), justamente o que a guinada da extrema direita imaginou destruir.
Para quem não esteve em São Paulo, saibam que panfletei em regiões afastadas do Centro (Zona Leste e Sul) e descobri que a campanha produziu uma compreensão muito mais clara sobre os movimentos de moradia. Escutei de camelôs que votariam em Boulos e Erundina porque eles não resolveriam as coisas com a polícia e a força bruta. Vi jovens tocando os hits da campanha em caixas de som na Rua Augusta. Apanhei dois motoristas de Uber que estavam animados com as suas propostas para os trabalhadores informais, especialmente a regularização do transporte por aplicativo. Guardas municipais me pediram adesivos e disseram que Boulos e Erundina são os únicos que valorizam mesmo os funcionários públicos. Uma eleição não é somente o final, mas também o começo de muita coisa. A campanha de Boulos inaugurou a era do #elxsim, afinal, Bolsonaro não é mais o único que oferece uma novidade ou utopia.