Disputa do judiciário: Lava Jato e STF
Prisão do supervisor da Lava Jato na Receita por extorsão de investigados. Requisição do MPF para que Lula vá ao regime semiaberto. Novas denúncias da Vaza Jato. Confissão do ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot.
Numa semana cheia de fatos que impactaram a Lava Jato, um episódio ainda assim se sobressai: a decisão do STF que questionou a estratégia processual da operação, em nome de garantir o princípio de ampla defesa pelo qual o réu deve ser ouvido por último nas alegações finais.
Com efeito, o julgamento atingiu a heterodoxia processual que caracterizava o nervo da força tarefa, desta vez a ponto de anular decisões já proferidas, o que atualiza não apenas a posição da Lava Jato, mas do próprio STF no tabuleiro das forças políticas.
Ao fim e ao cabo, a queda da Lava Jato pode redimir o Supremo. É isso que analisaremos a seguir.
1. A velha Lava Jato
A verdade novidade jurídica da Lava Jato foi a propositura de métodos e interpretações heterodoxas, sobretudo em termos processuais. Para os membros da operação, as garantias processuais, tal como prescritas na constituição, não serviam apenas ao devido processo legal, mas beneficiavam a impunidade dos criminosos de colarinho branco. Bastava, portanto, um bom advogado, para que filigranas processuais (como chamou o ministro Fux) emperrasse continuamente o andamento do processo.
Contra isso, a força tarefa privilegiou o princípio da máxima efetividade do processo penal. Dito de outro modo: em lugar das formalidades processuais em sua plenitude, pequenos desvios eram permitidos como preço a pagar pela “verdade dos fatos”. Quem melhor sintetizou o espírito da operação foi o desembargador federal Rômulo Puzzolatti ao arquivar uma representação de advogados contra o juiz Sérgio Moro:
“Os processos e investigações criminais decorrentes da chamada “Operação Lava-Jato”, sob direção do magistrado representado, constituem caso inédito (único, excepcional) no direito brasileiro. Em tais condições, neles haverá situações inéditas, que escaparão ao regramento genérico, destinado aos casos comuns.”
Para notar a consequência prática disso, basta observar os artifícios da Lava Jato que “empurravam” os processos: divulgação ilegal de escutas sigilosas; grampos em escritórios de advocacia; conduções coercitivas sem motivo anterior que justifique; importação de provas do exterior sem autorização necessária; prisões preventivas sem fundamental legal senão induzir a deleção; de delações sem nenhum valor probatórios às véspera das eleições; vazamento de dados fiscais confidenciais.
2. A ascensão da Lava Jato e o silêncio do STF
Por que o STF, enquanto corte constitucional, não coibiu a autonomia processual da Lava Jato que atuava à revelia de princípios constitucionais (como a presunção de inocência; o direito ao contraditório e ao devido processo legal; a proibição de provas ilícitas) ?
Naquela altura, a força tarefa era impulsionada pela energia social insurgente, versada sobre o lema do “combate à corrupção”, que dominou as ruas desde as manifestações de Junho de 2013. Mesmo antes disso, é bom lembrar que a fama dos ministros do STF foi conquistada, de uma vez por todas, durante o julgamento dos crimes de corrupção do Mensalão. Desmoronar a Lava Jato, como antes fizeram com a operação Castelo de Areia (2011), seria pôr em risco a popularidade conquistada.
Os operadores da força tarefa sabiam disso — tanto que, numa das mensagens reveladas pelo The Intercept, Dallagnol disse para Moro: “seus sinais conduzirão multidões”. Contando com o respaldo popular, os operadores da força tarefa não temiam as retaliações da corte, formando, assim, uma espécie de tenentismo togado que emparedava os ministros. Numa outra mensagem, Deltan afirmou: “o Min Fux disse quase espontaneamente que Teori fez queda de braço com Moro e viu que se queimou”.
Mesmo nas ocasiões em que o Supremo ensaiou reagir, os tenentes de toga não recuaram. Em seu livro recém-lançado, o ex-procurador geral Rodrigo Janot narra que chegou a repreender, sem sucesso, os integrantes da operação por ultrajarem os limites impostos pelo STF.
“Quando houve o compartilhamento da prova, o ministro Teori excluiu expressamente a possibilidade de vocês investigarem e denunciarem o Lula por crime de organização criminosa, que seguia no Supremo. E vocês fizeram isso. Vocês desobedeceram à ordem do ministro e colocaram como crime precedente organização criminosa.”
O resto da história nós conhecemos: Dallagnol apresentou o Power Point que acusou Lula de chefe da organização criminosa, e a investigação contra o ex-presidente correu a passos largos.
Enquanto isso, o Supremo não apenas “sentou em cima” de casos envolvendo excessos da operação, mas foi além. A começar pela mudança de interpretação que validou a prisão em segunda instância, uma das principais demandas dos lava jatistas. Mesmo em casos que excediam o âmbito estrito da operação, o STF agiu de acordo aos interesses da força tarefa — como o ministro Fux ao exigir que a Câmara refizesse do zero a votação das Dez Medidas Contra a Corrupção, defendidas por Moro e Dallagnol. O momento mais colossal, sem dúvidas, foi quando o ministro Gilmar Mendes suspendeu a nomeação de Lula como ministro, logo após o vazamento ilegal do grampo do “Bessias”, episódio que melhor ilustra a articulação cerrada entre STF e Lava Jato.
3. A queda da lava Jato e o resgate do Supremo
Muito embora tenha se pautado pela opinião pública, isto não foi suficiente para salvaguardar os ministros do STF. À medida que a escalação do tribunal era mais conhecida que os onze titulares da seleção brasileira, vários comportamentos do tribunal, inspirados tão somente na vaidade dos ministros, vinheram à público e inflacionaram a desconfiança perante a corte. Para citar alguns: aumentos salariais e a extensão do auxílio moradia; excesso de decisões monocráticas; decisões que assaltavam prerrogativas dos parlamentares (“ativismo judiciário”); lobbies em nome de parentes; violações da jurisprudência do próprio tribunal; casos de relações dos ministros com empresas com processos no STF.
Diante disso, a ascensão do tenentismo togado foi compensado pela derrisão da corte constitucional, que passou a ocupar o noticiário como a fração degradada do sistema Judiciário. O paradoxo, no entanto, é que não seria outra coisa senão o desgaste da própria Lava Jato que forneceria a chance de redenção ao STF.
Para apreender o declínio da Lava Jato nos últimos meses, pode-se observar a mudança de humor dos diferentes setores que apoiavam a operação:
— Opinião pública = os rumos altamente partidarizados da operação, ilustrados na ofensiva contra Lula e a efetivação de Moro como ministro de Bolsonaro, ludibriaram parte da opinião pública (em especial de esquerda) que passou a criticar os métodos da operação.
— Juristas = a revelação das mensagens pelo The Intercept conduziu as excrescências processuais de Moro e Dallagnol para o âmbito do inaceitável, o que diluiu o apoio do meio jurídico, a exemplo de juristas como Miguel Reale Jr. e a própria OAB que passaram a denunciar o desrespeito ao Estado de Direito.
— Parlamentares = após um longo período quietos, para não desagradar as bases eleitorais que apoiavam a força tarefa, os políticos passaram a questionar ações como as prisões preventivas e as buscas e apreensões nas dependências do Congresso, até o ponto em que recentemente promulgaram a Lei de Abuso de Autoridade para coibir tais eventos.
— Base aliada = mesmo no interior do núcleo de apoiadores mais ferrenhos, a operação foi cindida pela conversão de vários ao bolsonarismo, onde a liderança de Jair Bolsonaro, preocupado em salvar o filho 01, importou em atrofiar a ligação entre a sua base e a Lava Jato (sobre Dallagnol, o presidente compartilhou no twitter que “o cara é esquerdista estilo PSOL”).
O STF então percebeu o vácuo que se abria. Em outras palavras: os generais do STF viram, na fragilização dos tenentes, a própria salvação. Foi o ministro Gilmar Mendes, o mesmo que anuiu a Lava Jato ao suspender a nomeação de Lula, que passou a vocalizar a revolta contra a Lava Jato e arregimentar outros ministros que, até então, mantinham posturas coniventes à operação (Lewandowski, Toffoli, Moraes e Celso de Mello).
Para reconquistar o respaldo, o tribunal deslegitimaria as estratégias da Lava Jato ao mesmo tempo que atenderia as demandas dos mais diversos setores.
— Para a opinião pública de esquerda, a corte se dispôr a rediscutir temas sensíveis, que anteriormente beneficiaram a força tarefa, como a prisão em segunda instância e a suspeição do ex-juiz Sérgio Moro.
— Para os juristas, os ministros sinalizaram a índole garantista da corte ao limitar os desvios da operação como, por exemplo, a condução coercitiva para colher interrogatórios de investigados.
— Para os parlamentares, o STF retirou os crimes de caixa 02 da Lava Jato e conduziu à Justiça Eleitoral, além de declarar que a destinação do fundo bilionário da Lava Jato (derivado do acordo entre Petrobrás e EUA) seria decidida pelo Congresso, e não pelo MPF de Curitiba.
— Para os bolsonaristas, o presidente do STF, Dias Toffoli, suspendeu os processos que obtiveram dados do COAF sem autorização judicial, atendendo ao pedido do senador Flávio Bolsonaro e limitando a agilidade dos métodos lava jatistas.
O Supremo, assim, não apenas podou as asas da Lava Jato, mas enviou um recado para os entes da política nacional que se acostumaram a desconfiar do tribunal: — confiem em mim.
A contradição é que, embora a confiança no Supremo seja um requisito de estabilidade institucional, o desejo de agradar a todos não limitaria o papel de defesa constitucional da corte?
4. O novo Supremo
Na última quarta (02), a maioria dos ministros invalidou a praxe de abrir prazo comum para todos os réus, inclusive os delatores, que assombrava o princípio da ampla defesa, pela qual a defesa deve apresentar os argumentos finais após a acusação. Para além de surtir o efeito inédito de anulação das condenações, o julgamento marcou em definitivo a posição que o STF quer reassumir no cenário político: ao passos que os “mocinhos” da Lava Jato são desbancados, a corte quer despontar como zeladora da ordem jurídica.
Durante o seu voto na sessão, o presidente Dias Toffoli declarou:
“Esta corte defende o combate à corrupção, mantém as decisões tomadas feitas dentro dos princípios constitucionais e dos parâmetros do Estado de direito, mas repudia os abusos e os excessos e tentativas de criação de instituições e poderes paralelos. Se não fosse este Supremo Tribunal Federal, não haveria combate à corrupção no Brasil.”
De fato, a decisão a respeito das alegações finais, uma vez que fortalece os princípios constitucionais, endossa a postura do STF como “guardião do Estado de Direito”. Foi também de modo garantista que o STF se portou recentemente ao julgar inconstitucional um artigo da Lei de Responsabilidade Fiscal que permitia os cortes nos salários dos servidores. Ou quando tomou as rédeas e defendeu os direitos fundamentais nos casos envolvendo liberdade de expressão nas universidades (caso da bandeira anti-facista na UFF), a criminalização da homofobia e a censura de livros LGBT na Bienal do Livro.
No entanto, ao lado dessas decisões elogiáveis, o Supremo continua, em vários momentos, portando-se de modo extremamente controverso. Afinal, qual a razão, se não chamar atenção, para o inquérito que autorizou a busca e apreensão no apartamento de Rodrigo Janot? Ou da autorização a criação do auxílio-saúde aos juízes que aumentará os seus vencimentos em até 10%? Ou o ministro Gilmar Mendes que, mais uma vez, suspendeu os processos envolvendo Flávio Bolsonaro?
Preocupado em atrair os holofotes e agradar à todos, o Supremo logo se entranha em decisões desencontradas e absurdas. Para restaurar o seu lugar no seio do Estado de Direito, o tribunal precisa assumir um norte, para o qual a constituição é a única bússola possível.
Não por outro motivo, se a correção dos desvios da Lava Jato, por parte do Supremo, tem implicado no efeito positivo de fazer valer a constituição, a tarefa não pára por aí. Esperamos que o último julgamente tenha sido só um começo.