Ceci n’est pas une bourse: democratização do capital e bolsa de valores

Rodrigo de Abreu Pinto
5 min readJun 16, 2022

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Companhias acessando rios de dinheiro; ondas de IPOs transbordando; e os valuations se enchendo de múltiplos. Até que a virada no sentimento apanha muita gente desprevenida.

A desaceleração do crescimento, as taxas de juros crescentes e a inflação acelerada formaram a tempestade perfeita para que os traders reposicionassem abruptamente seus portfólios, não raro para longe das bolsas de valores.

A recente euforia do mercado e das bolsas escondeu, embora por breve momento, a redução do número de empresas listadas nas bolsas ao longo das últimas décadas.

Conforme a imagem acima, o número de empresas listadas nos Estados Unidos segue um formato de U invertido: aumentou 54% de 1975 até 1997 e desde então diminuiu fortemente — tanto pela delistagem de companhias que fecharam o capital ou foram adquiridas (M&A), quanto pela diminuição dos IPOs.

Para decifrar a questão, Craig Doidge, Kathleen M. Kahle, G. Andrew Karolyi & René M. Stulz escreveram um paper influente em que partiram da seguinte questão que dá título ao artigo: “Eclipse of the public corporation or eclipse of the public markets?”.

A conclusão é de que “what we are really witnessing is an eclipse not of public corporations, but of the public markets as the place where young successful American companies seek their funding".

Mas, ao contrário do senso comum, as empresas nascentes e startups não teriam se afastado das bolsas apenas pelos custos de abertura de capital e de manutenção de uma companhia aberta.

Como razão principal, os autores explicam que a diminuição das empresas listadas é efeito direto do modelo de negócios das novas empresas, fortemente marcadas pelos traços digitais e a predominância de ativos intangíveis.

Quando se trata da produção de bens e serviços tradicionais, os produtos são facilmente reconhecíveis. Uma lata de sopa Campbell é uma lata de sopa, afinal.

O mesmo não acontece quando o produto é intangível, “uma ideia”, desprovido de substância física e que só o fato de explicá-lo a alguém já nutre o risco de a ideia ser roubada. Isso, portanto, não é um cachimbo (ceci n’est pas une pipe).

Por exemplo: não dá para virar para o mercado e dizer que o capital levantado vai servir a otimização dos custos. Em meio a modernidade digital, a evolução das empresas depende menos do controle eficiente da base interna de ativos, e sim da agregação de interações e conexões que surgem de fora. O mote é mais conectividade do que eficiência e produtividade.

Em carta aos cotistas (nº 94, Dez. 2017), os gestores da Dynamo ilustram esse admirável mundo novo:

“O prodígio da modernidade digital surge como algo estranho. Diferente de outras tecnologias importantes como o automóvel que nos conduz a toda parte ou o foguete que nos levou à lua, as últimas gerações de smartphones conferem um poder quase incompreensível para seus usuários. No Apollo 11, se via o fogo da propulsão, nos carros, basta abrir o capô para se ter alguma ideia da mecânica das engrenagens. Já na tecnologia digital, coisas espetaculares acontecem sem que consigamos enxergar ou compreender seu funcionamento. Os upgrades são cotidianos, as inovações parecem surgir repentinas. O digital inunda nossas vidas e não se sabe sua origem nem destino. Quanto mais familiar, mais enigmático se torna.”

O resultado da ascensão de modelo de negócio com predominância de ativos intangíveis é que as empresas jovens tem menos incentivos a participar das bolsas, vide a dificuldade de que o público avalie corretamente o valor dessas empresas. Basta se perguntar: quem poderia prever que o modelo de negócios de Twitter, Netflix, Airbnb, Uber, Buser, Gympass, Quintoandar vingaria?

Segundo os autores de “Eclipse of the public corporation or eclipse of the public markets?”, isso ajuda a explicar certas tendências como (i) a redução do número de IPOs; (ii) a venda de startups para empresas maiores; e (iii) por que tantas empresas permanecem privadas por longos períodos (a exemplo do Uber e AirBnB que continuaram de capital fechado mesmo após terem alcançado avaliações de dois dígitos de bilhões de dólares).

Campbell’s Soup Cans (1962) de Andy Warhol

Isso é uma má notícia? Seria… senão fosse o fato de que o declínio no número de empresas listadas se deu em paralelo ao surgimento de instrumentos de investimento privados que se adaptaram bem, e até melhor, às urgências e necessidades dos novos modelos de negócios.

Estamos falando tanto de veículos como fundos de private equity, quanto de valores mobiliários e títulos de dívida que são distribuídos de modo simplificado e incluem menos direitos e obrigações do que as ações transacionadas nas bolsas.

As empresas jovens tiveram acesso a um capital mais paciente, faseado e com nível de discrição à altura das suas preocupações concorrenciais. Mesmo o volume de capital reduzido, quando comparado com o capital que levantariam em um IPO, revelou-se um problema menor já que os modelo de negócios inovadores passaram a se virar bem com menos capital em suas fases iniciais.

Embora ainda seja comum tratar a bolsa e o mercado de IPO como barômetro da atividade econômica, a conclusão é que as empresas e suas novas demandas estimularam o surgimento de um outro ecossistema de financiamento mais variado.

Falar em “democratização do capital” (como sinônimo para a expansão do financiamento às empresas de pequeno porte) era necessariamente se referir a “democratização das bolsas de valores”, como ilustra a experiência brasileira do Bovespa Mais.

La trahison des images (1929) de René Magritte

Desta vez, para além do fascínio magnético pela pontuação da Bovespa, a democratização do ambiente de investimento passou a ser medido pela diversificação e em que medida oferece, às empresas de menor porte, meios de financiamento alternativos e mais bem adaptados às suas necessidades.

No Brasil, iniciativas nesse sentido são a lei de ofertas restritas que permite a oferta pública de debêntures para investidores qualificados por parte de companhias que prescindem do registro de companhia aberta (Instrução CVM nº 476); o financiamento participativo em plataformas reguladas e conhecidas como crowdfunding (Resolução CVM nº 88); e a recente positivação dos instrumentos de investimento (opção de subscrição, debênture conversível, contrato de participação e mútuo conversível) que já eram usados em contratos atípicos entre investidores e empresas (Lei Complementar nº 182/2021).

Por isso, como anotou o ex-diretor da CVM Pablo Renteria, a bolsa de valores se tornou “mais uma opção, de inegável importância, dentre outras que compõem um sofisticado cardápio de mecanismos de financiamento, cada qual se ajustando a diferentes necessidades de capital, tendo em vista o modelo de negócios, o perfil do empreendedor e o estágio de desenvolvimento da empresa”.

A abertura de capital e listagem em bolsa ainda representam a celebração do sucesso da companhia, e ponto a partir do qual poderá crescer numa escala ainda maior e inimaginável. Mas antes de chegar lá, a criação de instrumentos especiais e menos onerosos de financiamento representam uma oportunidade para empresas que, de outro modo, estariam desprovidas de meios para o alargamento de suas potencialidades.

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Rodrigo de Abreu Pinto

Advogado (PUC-Rio) e Filósofo (FFLCH-USP). Diretor de Inovação da Câmara de Comércio Brasil-Portugal.