Comprando ações da própria companhia: entre o Insider Trading e os Planos de Investimento
O mercado é tido como eficiente quando o preço das ações reflete todas as informações disponíveis sobre as empresas cujos títulos são ali negociados.
Quando os investidores concluem que as informações são incompletas, a perda de confiança tão logo se traduz no rebaixamento do preço das ações já que, incapazes de avaliá-las, os investidores oferecem preços mais baixos para todas elas
As companhias devem, além de divulgar as informações de maneira tempestiva, torná-las acessíveis a todos os investidores mesmo tempo, sem que pessoas de “dentro” da empresa (insiders) possam se valer das informações antes de sua divulgação.
A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) prescreve a obrigatoriedade da divulgação de informações de modo tempestivo e equânime para que os investidores tomem suas decisões de negociação, e, como outro lado da moeda, reprime os atos que desequilibram a simetria informacional buscada, dentre os quais o chamado o ilícito de insider trading.
O insider trading é proibido no Brasil pela Lei das S.A. (art. 155, §§1º e 4º), bem como tipificado penalmente na Lei do Mercado de Capitais (art. 27-D), sendo vedado que qualquer pessoa que tenha tido acesso à informação relevante ainda não divulgada ao mercado utilize tal informação na negociação de ações.

Historicamente, provou-se difícil a condenação de suspeitos de insiders trading justamente pela dificuldade em produzir prova direta do acesso à informação e da motivação do agente.
A CVM, por conta disso, adota um regime de presunções sobre o assunto, presumindo que, em caso de negociação em face a existência de informação relevante ainda não divulgada, o insider teve acesso a tal informação e fez uso dela na referida negociação (Resolução CVM nº 44, art. 13, §1º, I, II e III)
De maneira completar, segundo a mesma CVM, considera-se relevante, a partir do momento em que iniciados os estudos ou análises relativos à matéria, as informações sobre operações de incorporação, cisão e fusão; mudanças no controle da companhia; cancelamento de registro de companhia aberta; e mudança do segmento da bolsa (Resolução CVM nº 44, art. 13,§1º, V).
A única forma de defesa afirmativa contra a acusação de insider trading é o mecanismo conferido pela própria regulamentação, o denominado Plano Individual de Investimento e Desinvestimento, previsto pela Resolução CVM nº 44 (art. 15) como um instrumento que confere presunção de legalidade para as negociações com ações de emissão da própria companhia (pendente ou não de informação relevante ainda não divulgada), inclusive pelos administradores.
O Plano, em suma, garante segurança jurídica para a companhia e os membros interessados em investir em suas ações sem o risco de fazê-lo em períodos vedados ou indevidos, sendo “o único mecanismo de defesa previsto na regulamentação da CVM”, como ressalta o ex-diretor da CVM Gustavo Gonzalez em artigo referência sobre o assunto (GONZALEZ, Gustavo. Planos de Investimento. In: Revista de Direito das Sociedades e dos Valores Mobiliários, vol. 5. São Paulo: Almedina, 2017, pp. 85–119)
O Plano é instituído individualmente pela companhia para estabelecer regras e parâmetros objetivos a serem observados pelos seus membros nas negociações futuras com ações de emissão da própria companhia. Os insiders, em suma, formalizam aprioristicamente as condições pelas quais o participante realizará as suas operações, eliminando qualquer discricionariedade do investidor sobre as condições em que se darão as negociações.
Como explicou o ex-diretor Pedro Olívia Marcílio de Souza, no âmbito do Processo CVM nº 2005/8456, julgado em 03.01.06:
“Sobre o Plano, devo notar, primeiramente, que ele pretende excluir qualquer discricionariedade na atuação dos Participantes, de modo a evitar que as decisões negociais a ele relativas sejam influenciadas por qualquer informação detida pelo Participante, que não seja de conhecimento do mercado. O objetivo das vedações à negociação na Instrução 358/02 foi, justamente”.
Mais recentemente, o diretor Alexandre Rangel, no âmbito do Processo CVM 05/2014, julgado em 15.06.21, o ilustre diretor reforçou:
“Nesses casos, está ausente a intencionalidade do agente, pois são operações realizadas por acionistas controladores, administradores e membros do conselho fiscal em conformidade com plano de investimento aprovado pela companhia, estabelecendo previamente e de forma transparente os períodos e quantidades a serem negociadas”.
Por fim, no já citado artigo, Gonzalez fornece uma ilustração didática sobre o procedimento:
“Por exemplo, um diretor de companhia aberta pode, em uma data em que não tem conhecimento de uma informação privilegiada, instituir um plano prevendo que mensalmente investirá, em uma data pré-definida, determinada quantia na aquisição de ações de emissão da companhia em que trabalha, à cotação vigente no mercado. A data de investimento pode, por exemplo, ser o dia em que o executivo recebe a remuneração, e o valor do investimento mensal pode ser fixado como um percentual pré-estabelecido dos seus vencimentos. Como a decisão de realizar tais operações foi formalizada em um momento em que não havia informação privilegiada, o insider poderá adquirir ações da companhia, nas datas previstas no plano, mesmo se, naquele momento existir informação relevante, ainda não divulgada ao mercado, indicando que o papel deverá se valorizar. Em contrapartida, referido diretor também estará obrigado a realizar tais negócios, ainda que venha saber de informação privilegiada desfavorável, que indique as ações que se comprometeu a adquirir possivelmente irão se desvalorizar”.
O Plano é especialmente interessante para companhias envolvidas em constantes reorganizações societárias e operações de M&A que dificultam a negociação de ações pelos administradores por causa dos variados períodos de blackout,
Por um lado, pode-se adotar a Politica de Negociação (art. 15), também previsto pela Resolução CVM nº 44º, em que regulam as operações com ações de sua emissão pelos seus membros.
Por outro, o Plano Individual de Investimento e Desinvestimento pode ser considerado um complemento da Política de Negociação, já que ambos visam permitir a negociação inclusive em períodos de blackout.
Assim, a Companhia estimula que os empregados invistam em suas ações, contribuindo ao alinhamento dos interesses de longo prazo entre a companhia e os beneficiários. Os empregados, por sua vez, tem a oportunidade de diversificar o seu portfólio de investimento e aumentar sua exposição à companhia em que trabalha.

A regulamentação brasileira sobre os Planos foi inspirada diretamente pelos mecanismos da Rule 10b5–1 da legislação americana, como reconheceu Gustavo Gonzalez:
“A regulamentação dos planos de investimento da CVM teve inspiração na regra norte-americana. No entanto, além de não se limitar a replicar a norma vigente, buscou incorporar pleitos lá formulados em discussões sobre possíveis aperfeiçoamentos da Rule 10b5–1”.
Nesse sentido, a legislação brasileira foi além ao dispôr algumas exigências com o objetivo de coibir que os Planos se tornem meios de encobrir transações ilícitas. Dentre as exigências adicionais da lei brasileira, destacam-se:
- Cada beneficiário pode firmar apenas um único Plano com a companhia (art. 16, §3º, I)
- Prazo de carência de 3 meses para que o próprio plano, suas eventuais modificações e cancelamento produzam efeitos (art. 16, §1º, IV)
- Deve-se determinar o órgão da Companhia que será responsável pela supervisão dos Planos de Investimento relativo às ações de sua emissão (art. 16, §4º, II)
Muito embora seja previsto desde a Resolução CVM nº 358/2002, os Planos de Investimento só ganhariam contornos mais claros no Brasil pela Instrução CVM nº 568/2017.
Mais recentemente, a Resolução CVM nº 44 flexibilizou algumas exigências que, na visão da CVM, estariam dificultando a adoção pelas companhias brasileiras. Como a Autarquia expôs na Audiência Pública que resultaria na nova regra:
“A CVM acredita que a reforma realizada por meio da edição da Instrução CVM no 568, de 2015, foi positiva, mas que os requisitos previstos para os planos de investimento talvez tenham sido excessivamente rigorosos e constituem hoje um entrave para a sua maior utilização”.
Dentre as novidades da regulamentação mais recente, estão:
- Ampliação do rol de pessoas que podem instituir tais mecanismos (art. 16, caput)
- Redução de 6 para 3 meses do prazo mínimo para que o plano, suas modificações e cancelamentos produzam efeitos (art. 16, §1º, IV)
- A compra ou venda de valores mobiliários pode ser deflagrada por causa de eventos específicos (art. 16, §1º, III)
Para ser instituído, o Plano deve ser formalizado por escrito perante o Diretor de Relação com Investidores (art. 16, §4º, I) sendo que, como deve ser autorizado pela Política de Negociação, é o Conselho de Administração que delibera, em última instância, sobre a Política de Negociação.
Uma vez instituído, o Conselho de Administração ou outro Órgão Estatutário deve implementar controles internos para a verificar a aderência das negociações dos participantes aos planos por eles formalizados (art. 16, §4º, II), a exemplo de rotinas que verifiquem as operações realizadas pelos seus membros, assim como regras que disciplinem a periodicidade das informações a serem prestadas pelos titulares de Planos sobre as suas operações.
Dado o esforço crescente da CVM em punir negociações privilegiadas por executivos, como provado pela ampliação da lista de presunções da Resolução CVM nº 44, o uso dos Planos deve crescer ainda mais ao longo dos próximos anos. Por isso, mais do que nunca, aumenta a importância de melhor compreendê-los.