CVM e a Agenda Regulatória 2022

Rodrigo de Abreu Pinto
6 min readDec 15, 2021

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Na última semana, a CVM lançou a Agenda Regulatória 2022 em que listou as prioridades normativas para o ano que vem.

Metaesquema (1958) de Helio Oiticica

Antigamente, diz-se que os participantes do mercado se surpreendiam quando novas Instruções eram publicadas. Com a agenda regulatória listando as Audiências Públicas e Instruções que estão saindo do forno, a CVM confere transferência e previsibilidade ao seu empenho de promover o desenvolvimento do mercado de capitais por meio da modernização da regulação.

A divulgação da Agenda Regulatória se tornou regra durante o mandato do ex-presidente Leonardo Gomes Pereira (2012–2017). Formado em engenharia e economia, com a atividade profissional voltada ao setor privado, a presidência de Leonardo representou um choque de gestão em termos de transparência na execução de tarefas e previsibilidade na tomada de decisões.

Com o full disclousure que inspira a regulação do mercado de capitais aplicado sobre o próprio órgão regulador, o ex-presidente iniciou a digitalização das tramitações internas em substituição ao papel, a abertura da pauta de julgamentos ao público e, não menos importante, a divulgação da agenda regulatória que sinaliza com clareza a trajetória normativa da CVM no ano seguinte.

A edição de normas para a regulamentação das atividades desempenhadas no mercado de valores mobiliários é um dos âmbitos de atuação da CVM, conjugado com a fiscalização ao cumprimento dessas normas e a aplicação de sanções às violações.

Se Bismarck dizia que os cidadãos não dormiriam tranquilos se soubessem como são feitas as salsichas e as leis, o mesmo não se aplica à CVM. A transparência e a aproximações dos pares, por meio da Agenda Regulatória e das Audiências Públicas, aumenta a adesão e a receptividade às normas e procedimentos pelos participantes do mercado e, como outro lado da moeda, limita as chances de abusos do regulador pela vigilância constante a que fica submetido.

Em 2021, chamou atenção o ritmo frenético da Autarquia pela realização de inúmeras Audiências Públicas sobre alguns dos temas mais relevantes da regulação do mercado de capitais (como fundos de investimento, ofertas públicas, agentes autônomos e BDRs), além da revisão das Instruções na esteira do Decreto 10.139/2019 que deliberou a revisão e consolidação de todos os atos normativos inferiores a decretos.

A presteza é surpreendente, ainda mais considerando as limitações de verba e pessoal que acomete os trabalhos da Autarquia. Não é demais lembrar que a CVM passou boa parte do ano com apenas três diretores pela demora do Executivo em indicar os substitutos e do Senado em aprová-los. Juntamente aos problemas de custeio relativos ao orçamento da CVM que não cresceu no mesmo ritmo do mercado que ela regula (sobre o assunto, ver o excelente artigo de Isac Costa e Henrique Leite).

Para 2022, em paralelo às Instruções e Audiências Públicas, destacam-se o início do sandbox regulatório para os projetos recém-aprovados, o aprofundamento do uso de inteligência artificial e de ferramentas de processamento de dados e, em âmbito sancionatório, as investigações envolvendo as declarações do presidente Bolsonaro e Paulo Guedes sobre a Petrobrás.

Mais propriamente sobre a agenda normativa, o foco principal está em concluir as Audiências Públicas de anos recentes (há AP de 2019 que ainda não foi concluída, por exemplo), como se nota pelos poucos e relativamente modestos temas que serão objeto de novas Audiências Públicas (transferência de custódia, classificação de investidor qualificado e Fiagro).

Essa opção decorre tanto das Audiências em aberto terem abordado temas espinhosos, com a contribuição de muitos participantes e que por isso exigem esforço quase exclusivo. Quanto pelo término do mandato do atual presidente Marcelo Barbosa em julho de 2022, adotando-se a estratégia de concluir o que foi iniciado ao mesmo tempo que preserva o caminho aberto para o futuro presidente determinar as próximas prioridades.

De novidades, sobressai a regulação envolvendo “influenciadores digitais”, objeto de Análise de Impacto Regulatório (AIR), que expressa a consciência da CVM de que a informação é produzida, disseminada e consumida de modo muito diferente de quando as regras foram concebidas.

Ainda, a proposta de regulamentação do mercado de acesso, criados pelo Marco Legal das Startups, também objeto de AIR.

O estudo de AIR se tornou obrigatório para cada proposta de edição e alteração de atos normativos, conforme estabelecido pela Lei de Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019). O recente Decreto 10.411/2020, por sua vez, permitiu que a AIR seja dispensada em caso de ato normativa que reduza as exigências e obrigações, como é o caso do mercado de acesso. Considerando que a facilitação do acesso ao mercado de capitais pode ser um elemento importante da retomada econômica, não seria o caso de propor uma Audiência Pública sobre o assunto já em 2022? Fica a provocação.

Exemplos de temas em voga que ficaram de fora são a coibição ao green washing (recomendado em estudo recente da IOSCO), assim como a abertura do portfolio de fundos para o investimento direto em criptoativos (atualmente, a regra permite apenas o investimento indireto através de outros veículos como fundos estrangeiros).

Chama atenção na Agenda Regulatória de 2022 a quantidade de temas que a CVM está se debruçando em consequência de mudanças na legislação, contrariando o pouco espaço que o mercado de capitais historicamente teve no Congresso. Alguns exemplos são alterações na regulação dos fundos de investimento em decorrência da Lei 13.874/2019; as alterações do Doing Business em função da Lei de Ambiente de Negócios (Lei 14.195/2021); as novidades previstas pelo Marco Legal das Startups (Lei Complementar 182/2021); e a regulamentação do Fiagro na esteira da Lei 14.130/2021.

Partindo disso para uma leitura mais geral, nota-se alguma sintonia entre o regulador e o legislador, ao menos no que diz respeito a preocupação com o arcabouço jurídico-regulatório destinado a conferir maior flexibilidade aos agentes econômicos em geral, e a economia dos custos incorridos para o cumprimento da regulação.

No Congresso, destacam-se reformas microeconômicas recentes como a Lei Completar nº 167/19 (Empresas Simples de Crédito — ESC), os Marcos Regulatórios do Saneamento (Lei 14.026/2020) e das Startups, a autonomia do Banco Central, a Lei de Liberdade Econômica, o Sistema de Pagamentos Instantâneos do Banco Central (Pix) e a Lei de Ambiente de Negócios.

Como destacou o ex-presidente da CVM, Marcelo Trindade, é no mínimo incoerente que um governo que se preocupa com micro reformas do ambiente de negócios atue de maneira a prejudicá-lo em tantas frentes muito mais relevantes, como o combate à pandemia e a proteção ao meio-ambiente”.

No âmbito da CVM, diversos temas presentes na Agenda Regulatória traduzem uma tentativa ampla e ambiciosa de desburocratizar a regulamentação vigente e reduzir os custos de observância. Para, assim, desenvolver e facilitar o acesso ao mercado de capitais nacional, de forma a “democratizar ainda mais o mercado de capitais tanto para investidores quanto para emissores”, sustentou o atual Diretor da CVM, Alexandre Rangel, em sua sabatina no Senado Federal, em 20 de outubro de 2020.

Duas décadas atrás, a preocupação da CVM e da B3 estava em ressaltar a capacidade do sistema jurídico local em proteger os investidores, visando recuperar a confiança perdido pelo crash da Bolsa do Rio e por escândalos como das Fazendas Boi Gordo nos anos 90. As regras de ofertas públicas da Instrução CVM nº 400/2003 e o Novo Mercado da B3 são exemplos da preocupação dos reguladores em torno da valorização das práticas de governança corporativa e de instrumentos de proteção dos investidores.

Uma vez reconquistada a confiança ao longo dos últimos anos e os investidores de varejo somando quase 4 milhões de pessoas, o pêndulo regulatório se deslocou da tutela dos investidores para os estímulos ao ingresso de novas companhias no mercado de capitais.

Em sua sabatina no Senado em 05.07.2021, o recém-empossa Otto Lobo afirmou, que “com o atual cenário econômico da taxa de juros baixa, o mercado brasileiro está em franca expansão, o que aumenta ainda mais a responsabilidade da CVM no desempenho de suas funções de modo a eliminar as falhas de mercado existente e tornar o ambiente mais democrático e seguro para todos participantes”.

Por outro lado, o contrário é ainda mais verdadeiro: no atual cenário de taxa de juros crescendo em ritmo acelerado, a responsabilidade da Autarquia é ainda maior, pois se trata de encontrar as soluções jurídico-regulatórias que minimamente compensem o desastre econômico.

Em face da relevância dos aperfeiçoamentos propostos na Agenda Regulatória 2022, fica a certeza de que caso o mercado não reaja conforme esperado no próximo ano, as causas estarão na economia, e não no direito.

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Rodrigo de Abreu Pinto

Advogado (PUC-Rio) e Filósofo (FFLCH-USP). Diretor de Inovação da Câmara de Comércio Brasil-Portugal.