Demanda fraca e taxa de juros reduzida: o papel renovado do gasto público.

Rodrigo de Abreu Pinto
7 min readOct 11, 2019

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À esta altura, ninguém em sã consciência nega que a Nova Matriz Econômica, implementada pelo governo Dilma, provocou desequilíbrios macroeconômicos que vão desde a má alocação de recursos até a oscilação do câmbio e da taxa de juros.

De modo contra-cíclico, isto é, contra a recessão e a incerteza nascidas da crise de 2008, o governo prescreveu medidas fiscais que alimentaram o princípio ingrediente do sucesso petista: a demanda. Para isso, deu-se a expansão do crédito via BNDES; a redução da Selic; o aumento do salário mínimo; os subsídios e as desonerações; o estímulo ao endividamento dos estados com garantias do Tesouro Nacional.

Se, durante o governo Lula, o impulso à demanda forneceu um dinamismo inédito ao mercado interno (criando o chamado “mercado de massa”), no momento da Nova Matriz a situação era outra: não era mais a demanda, e sim a insuficiência de oferta que limitava a economia. De modo mais claro: o empecilho estava na baixa produtividade da economia (infra-estrutura deteriorada; tecnologia ultrapassada; mão de obra desqualificada; impostos desregulados), razão pela qual a demanda sobrepesava as condições de oferta ou vazava para exterior (déficit na balança de manufaturados e serviços)

A consequência não poderia ser outra: à medida que a demanda pressionou a estrutura de oferta, o aumento dos gastos públicos produziram inflação e não crescimento, e todas as consequências supervenientes como desemprego e crescimento da dívida pública.

Foi pensando nisso que Mário Torós, ex-diretor de Política Monetária do Banco Central, afirmou semana passada ao Estadão: “O exemplo da nova matriz econômica é para ficar guardado para lembrar o desastre que foi o resultado e que estamos pagando até hoje.

Gráfico sobre a redução do orçamento destinado aos investimentos públicos (Fonte: Correio Brasiliense).

Ora, se é justo não esquecer os erros para não cometê-los outra vez, também vale questionar se essa lembrança já não estaria a ponto de turvar as possibilidades do presente.

Já que tomamos a guinada inflacionária como índice do fracasso da Nova Matriz, a inflação corrente se encaminhando para o terceiro ano abaixo da meta não indica que o problema mudou?Mesmo com a liberação adicional do FGTS e a redução da taxa básica de juros, a inflação dos últimos doze meses está em 2,89% — bem abaixo da meta de 3,25% para 2019. Sendo assim, considerando o alto nível de ociosidade (desemprego e uso restrito da capacidade instalada) que explica a baixa do nível de preços, não é outra coisa senão a demanda insuficiente que está limitando a economia brasileira.

A questão já não é mais o excesso fiscal do Estado, mas a escassez do gasto público. Afinal, quando há capacidade ociosa, é a demanda agregada, definida pelo despesa estatal, que determina o PIB — ao menos no curto prazo — já que não devemos esperar que o impulso venha do consumo autônomo (deprimido pelo endividamento e o desemprego) e nem dos investimentos, já que os empresários aguardam sinais inequívocos de reação para investir em equipamentos e insumos. Neste cenário, como escreveu Bráulio Borges, “nada mais “ortodoxo” do que estimular a demanda em uma economia operando muito aquém do pleno-emprego”, ainda que tais estímulos sejam moderados e temporários.

O governo, ao contrário, retruca que os investimentos virão através das privatizações e concessões. No entanto, as privatizações não tendem a gerar investimentos no curto prazo, já que consiste na troca da propriedade de ativos já constituídos, onde o aumento da rentabilidade se dá, antes, pelas melhorias na gestão e não pelo investimento em capital fixo. Por outro lado, as concessões de rodovias, aeroportos, portos e ferrovias tem velocidade própria. Segundo as estimativas do Itaú, os investimentos privados em concessões não terão impacto nenhum em 2020 e de apenas 0,3% do PIB em 2022.

Um problema recorrente, e nisso o governo está certo, é que vários investimentos recentes do setor público sequer chegaram ao fim — seja pelas licitações mal feitas, seja pelo “apagão das canetas” provocado pela operação Lava Jato. De fato, uma fração considerável das obras públicas se inscrevem como desperdícios do Estado, mas isso não conta tudo. Como sugeriu Nelson Barbosa, “devemos discutir como investir melhor em vez de desistir de investir”, até porque temos bons exemplos de cuidando, redobrando o cuidado para associar as empresas mais produtivas, e não aquelas com maior poder de barganha política.

Uma primeira opção seria reativar o programa Minha Casa Minha Vida (MCMV). Contudo, a despeito do crédito subsidiado, o grau de endividamento e incerteza ainda é tal que dificilmente as famílias estariam dispostas a comprarem unidades residenciais no volume necessário ao programa.

Não por outro motivo, uma outra alternativa é a conclusão das obras públicas paralisadas por problemas técnicos, orçamentários ou políticos (segundo dados do TCU, são cerca de 14 mil obras). Junto a isso, a manutenção da infra-estrutura existente, então deteriorada pela falta de reparo, já que o investimento atual sequer é suficiente para repor a depreciação do capital público.

Segundo informações do Núcleo de Contas Nacionais da FGV, a indústria de construção está operando com um hiato do produto de -10,3% (diferença entre a capacidade corrente e a capacidade potencial) e possui um multiplicador fiscal de 1,8. Para completar, o setor é responsável por nada menos de que 8,5% do emprego gerado na economia.

Além de gerar muitos empregos, as ocupações da construção civil exigem menor qualificação, o que favorece rapidamente a massa dos desempregos, sobretudo os menos escolarizados que são os que estão desempregados a mais tempo. Segundo dados da recém-saída Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) do IBGE, são família que possuem renda entre R$ 1.908 a R$ 2.862 e gastam 88% com consumo, alcançando 100% nos casos das famílias que ganham abaixo de R$ 1.908 — o que indica como os novos empregos não tardarão em alimentar o dinamismo do mercado interno.

Contra qualquer tipo de atuação mais ativa do Estado, a principal objeção é que o aumento dos gastos atrapalharia a obtenção de superávit primário (resultado positivo das receitas e despesas, excluindo os juros), visto como único recurso para a estabilização da dívida pública.

Por um lado, em termos da dívida bruta, é certo que somente o superávit primário reduz a quantia. No entanto, caso consideremos a medida usual da dívida em relação ao PIB, deve-se levar em conta que, no atual cenário de baixa taxa de juros, é possível que estabilizemos a dívida mesmo antes de ultrapassar o déficit primário.

Basicamente, a estabilidade da dívida/PIB depende de três fatores: resultado primário; taxa de juros; crescimento econômico.

— Dívida/PIB _ resultado primário e taxa de juros = Quando a Selic (taxa de juros que incide sobre a dívida pública) está baixa, o custo de rolagem da dívida caí. Assim, mesmo que não se obtenha superávit, o custo de financiamento do déficit é pequeno e não ameaça culminar no crescimento explosivo da dívida. Atualmente, por mais que a Selic já esteja em níveis historicamente baixas, o Copom deverá reduzir ainda mais nas próximas reuniões, já que assim justifica a inflação controlada e a extrema liquidez do cenário internacional).

— Dívida/PIB _ crescimento econômico = Ao lado disso, ao passo que os investimentos públicos e outras reformas do governo (como os novos marcos regulatórios do gás e do petróleo) surtam efeitos sobre o PIB, o crescimento auxiliará não apenas o resultado primário ao melhorar a arrecadação (ingresso de receitas via impostos), como diminuirá a dívida quando medida em relação ao PIB.

Reunindo esses três fatores (resultado primário, taxa de juros, crescimento econômico), o economista Manoel Pires, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, preparou a seguinte tabela:

Para o autor, o cenário preferido é com Selic de 4,5% e crescimento de 2%, de modo que o resultado primário de equilíbrio estaria entre -0,65% do PIB.

À primeira vista, a suposição parece irreal, posto que o nosso déficit primário esperado em 2019 é de 1,90% do PIB (R$ 139 bilhões).

Contudo, formulado ainda durante o governo Temer, aquele orçamento não incluiu uma série de receitas, muitas das quais avalizadas pela atual equipe econômica, que deve reduzir consideravelmente o déficit. Segundo as contas de José Fucs, estima-se que o déficit em 2019 pode ficar em 0,68% (R$ 50 bilhões), já que devemos considerar os recursos provenientes dos ganhos com o leilão da cessão onerosa do pré-sal, os recursos empoçados em diferentes ministérios, a antecipação do pagamento de dividendos pelas estatais e os tributos da venda das subsidiárias das estatais.

De 2020 em diante, a tendência é que esse número decresça ainda mais, posto que o ministro Paulo Guedes já prometera novas privatizações e concessões, os cortes de subsídios e desonerações, a antecipação dos pagamentos do BNDES ao Tesouro e, não menos importante, a reforma do funcionalismo público que virá na esteira da reforma da Previdência. À isso, somam-se ainda as receitas tributárias que serão geradas pela aceleração do crescimento.

Por isso, mesmo sob a ótica fiscalista, é plausível lançar mão dos investimentos públicos (Nelson Barbosa sugere algo em torno de R$ 35 bilhões) para ativar a economia então deprimida pela falta de demanda. Uma vez sabido que a estabilização da dívida está mais perto do que reza a missa, avalizar o aumento dos gastos públicos não significa abrir mão do ajuste estrutural das contas públicas. Ao contrário, trata-se de permitir que o ajuste fiscal seja menos veloz e severo, de modo que o desemprego não perdure e os ministérios não corram risco de shut down pela falta de recursos.

É verdade os economistas ainda não atentaram para isso, mas a explicação é óbvia: o cenário de baixa de juros no Brasil é realmente uma novidade.

Não por outro motivo, se não bastassem os cinco anos de corte de gastos que até agora não resolveram a crise nem o crescimento da dívida pública, o mesmo Mario Toros, ainda na entrevista ao Estadão, afirmou: “Não há mágica, nem atalho para o crescimento sustentado. É preciso persistir fortemente nesta agenda que está sendo adotada que os resultados vão aparecer.

Em lugar disso, o que o contexto reloaded sinaliza é que estamos diante, não de mágica ou atalho, mas de outro caminho possível. Para quem insiste em não ver, vale ao menos escutar Keynes: “Os economistas atribuem a si próprios uma tarefa demasiadamente fácil e igualmente inútil se, nos períodos de tormenta, apenas nos podem dizer que, quando a tempestade tiver passado há muito, o oceano ficará calmo de novo.”

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Rodrigo de Abreu Pinto

Nascido em Recife. Formado em filosofia pela FFLCH-USP. Mora no Rio de Janeiro e estuda direito na PUC-Rio.