Desenvolvimentismo militar
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Uma coisa me chamou atenção na saída de Moro: as notícias especulavam mais a reação dos militares que do mercado. Saber se Paulo Guedes seria o próximo era menos importante que o desembarque dos fardados.
Isso é outro modo de dizer que a elite econômica perdeu o controle do processo que ajudou a desencadear. Nem o crescimento esperado, nem o presidente amansado.
Mais do que nunca, dependem dos militares. Seja porque conferem a legitimidade que resta ao governo, seja pelo acirramento do conflito entre capital e trabalho na esteira da crise.
É assim que deve ser lido o lançamento do plano de retomada econômica sem a liderança da equipe econômica, mas dos militares. Para quem esperava alvoroço, o empresário Synésio Batista, presidente da Abrinq, traduziu o sentimento: “Não teve ataque ao ministro Paulo Guedes. É um plano como militar pensa. E o plano não é ruim para o Brasil.”
No momento em que partes do governo deságuam, os militares permanecem e querem garantir, além da ordem, a sobrevida do governo — seja com Bolsonaro ou Mourão.
Sabem, no entanto, caso a crise econômica se arraste até 2022, é provável que saíam do governo, outra vez, como fracassados. Contra isso, o recém-lançado Pró-Brasil — baseado em investimentos públicos em obras de infraestrutura — hackeia o programa econômico de Guedes que nem precisou de pandemia para desiludi-los com o PIBinho de 2019.
Para o ministro da Economia, a participação do Estado alijaria os investidores privados da economia, os quais só seriam convencidos pelas reformas estruturais e o ajuste das contas públicas. A lógica do Pró-Brasil é que as obras públicas, além de remediarem alguns entraves logísticos, geram empregos e a demanda necessária para suscitar a retomada do crescimento a fim de atrair o empresariado nacional. Essa seria a única maneira de animá-los enquanto a crise lhes devoram a poupança e o apetite ao risco, inclusive dos investidores internacionais (basta ver a decisão da Boeing em cancelar a compra da Embraer).
Quem decerto não esperava a rasteira era o ministro Paulo Guedes. Não só porque parecia confortável como Posto Ipiranga, mas porque a pandemia já lhe fizera tomar medidas radicalmente contrárias ao DNA liberal (renda básica emergencial, crédito subsidiado via bancos públicos, compra de equipamento pelo aumento da dívida). O equívoco, dessa vez, é que teriam a data de validade ao final da pandemia, sendo que os militares planejam o “keynesianismo” até 2022.
O ministro da Economia reagiu e o presidente, por sua vez, reiterou que “o homem que decide a economia no Brasil é um só: Paulo Guedes” — assim como na Saúde era Mandetta e na Justiça era Moro. Daqui em diante, é certo que teremos mais uma disputa entre liberais e desenvolvimentistas no interior do próprio governo, assim como tivemos nas gestões anteriores (“Pedro Malan-Gustavo Franco x José Serra-Dorothea Werneck” e “Palocci-Zé Dirceu x Dilma-Guido Mantega”).
Se o general Braga Netto, ao lado do ministro Tarcísio (Infraestrutura), estão em vantagem sobre Guedes, isso não decorre só da legitimidade que os militares conferem ao governo. Outro ativo é a promessa de melhor relação com o Congresso, já que um dos mentores do Pró-Brasil é o ministro Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional), articulador das reformas trabalhista e da Previdência. E ainda mais decisivo, é que o programa desenvolvimentista responde melhor a coalizão de interesses a reboque da pandemia:
— Industriais = na saída da crise, não querem ouvir falar das pautas liberais de Guedes como a abertura comercial, a participação estrangeira em licitações públicas, os cortes no sistema S e o encolhimento do BNDES.
O general Braga Netto já se reuniu com Paulo Skaff e a jornalista Miriam Leitão comentou na saída: “Guedes sabe que quando militares e o presidente da Fiesp se encontram, como ontem, para discutir um plano econômico, não há espaço para o seu projeto liberal”.
— Grande empresariado da construção civil = serão beneficiados pelos investimentos em infraestrutura que agregam a demanda do setor, especialmente das grandes empreiteiras, as únicas com know how para obras de grande porte.
— Médio empresariado do varejo e serviços = decepcionados com Guedes, incapaz de cumprir a prometida desoneração da folha, apostam que a rápida criação de empregos pode se traduzir no dinamismo do mercado de consumo e serviços.
— Bancos = não abrem mão da defesa do ajuste fiscal, mas não estão como na crise de 2008 em que os ativos financeiros foram mais duramente afetados. Agora, a direção de causalidade é inversa — da economia para o mercado financeiro — de modo que estão mais preocupados com as falências das empresas.
— Classes populares = as obras de infraestrutura não exigem mão de obra qualificada e ainda assim são intensivos em força de trabalho, o que atinge o contingente do subproletariado que normalmente tem dificuldades de arrumar emprego.
Essa coalizão de interesses não está tão distante da “composição heterogênea, oligárquica e quase sempre liberal que sustentou, política e socialmente, o sucesso econômico do desenvolvimentismo militar brasileiro”, como descreveu José Luis Fiori. O milagre econômico se baseou na combinação de obras públicas, arrocho salarial, mão-de-ferro sobre os sindicatos e manutenção do patrimonialismo, características que estão novamente presentes.
A diferença é que o arcabouço institucional dos tempos da ditadura — sobretudo as grandes estatais — já nem existem mais, o que confere razão ao empresário Flávio Rocha que tranquilizou os pares afirmando que “não é a volta do protagonismo do estado”.
Sem ceder aos excessos do II PND de Geisel, os militares patrocinarão os investimentos públicos, sem abrir mão da defesa das reformas estruturais — talvez o suficiente para manter Paulo Guedes, feliz em contar com os militares para desmobilizar as massas, como o mesmo sugeriu na ameaça do AI-5.
Se há boas chances de dar certo, é porque a elevada ociosidade e o desemprego devem garantir um crescimento acelerado e sem inflação. E a vantagem de governar um país que não cresce há anos é que qualquer espirro, por menor que seja, já parece um milagre.
Com Bolsonaro ou Mourão, os militares talvez encontraram uma saída para perdurar no poder.