Elon Musk vai à lua e Delaware aos trópicos

Rodrigo de Abreu Pinto
8 min readApr 21, 2022

Em menos de uma semana, Elon Musk revelou que era titular de 9% das ações do Twitter, ganhou um cargo no Conselho de Administração, desistiu, e terminou com uma proposta de aquisição da companhia por US$ 43 bilhões. E há quem achasse que o lado mais excêntrico de Musk eram os passeios na lua…

A proposta de Musk está nas mãos do board of directors do Twitter a quem cabe decidir se a venda será, ou não, discutida em Assembleia-Geral dos acionistas.

Contra isso, Elon Musk tweetou que “seria absolutamente indefensável não submeter a oferta ao voto dos acionistas. Eles são os donos da companhia, não o Conselho de Administração”.

Em tese, os administradores devem considerar a oferta de acordo com os deveres fiduciários e a missão de atuar na defesa do interesse social da companhia. Eles não podem simplesmente dizer que não vão com a cara de Elon Musk para rejeitar a proposta sem submetê-la os acionistas.

“O Conselho de Administração do Twitter irá analisar cuidadosamente a proposta antes de tomas as decisões em nome do melhor interesse da Empresa e de todos os acionistas do Twitter”, afirmou-se em comunicado oficial.

Mas na prática, os administradores gozam de discricionariedade para não remeterem o assunto para a Assembleia com base numa ampla gama de justificativas. Além de autonomia para adotarem outras medidas defensivas a tomada de controle, a exemplo das chamadas poison pills.

Em caso de rejeição da proposta pelo board of directors, a saída óbvia para Elon Musk é realizar uma oferta diretamente aos investidores que independe de aprovação dos órgãos sociais da companhia.

A oferta pública de aquisição de controle é o mecanismo clássico para a tomada de controle de companhia aberta quando a proposta deixa de ser amigável e se torna hostil, sendo a diferença entre ambas a anuência dos administradores na primeira e a falta dela na segunda.

Para inibir o aumento de participação de Musk via oferta direta aos acionistas, o Conselho de Administração aprovou uma poison pill com o seguinte mecanismo: se Musk adquirir a propriedade de 15% ou mais das ações do Twitter, os demais acionistas automaticamente ganharão o direito de comprar ações adicionais com desconto. O efeito é que a participação de Musk recém-adquirida será diluída significativamente, bloqueando o aumento que porventura resultaria numa aquisição de controle.

Em face de casos e notícias abordando a governança corporativa em companhias americanas, somos tentados a identificar situações parecidas na jurisdição brasileira. Mas tão logo advém uma série de estranhamentos, a começar pelo papel preponderante do Conselho de Administração na negociação entre Musk e Twitter que resumi acima.

A depender da estrutura acionária que caracteriza as companhias de cada país, a governança corporativa apresenta características e desafios próprios.

O estudo do direito societário comparado ensina que o modelo organizacional das companhias americana é diferente do hegemônico no Brasil.

No Brasil, onde predominam as sociedades com capital concentrado, a legislação que regula os poderes decisionais dos órgãos societários confere atribuições e amplos poderes à Assembleia Geral, onde os controladores exercem o seu poder pela titularidade da maioria acionária.

A Lei das S.A. determina que a assembleia-geral, convocada e instalada de acordo com a lei e o estatuto, tem poderes para decidir todos os negócios relativos ao objeto da companhia e tomar as resoluções que julgar convenientes à sua defesa e desenvolvimento (art. 121).

Já o controlador deve usar efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia (art. 116).

Caso a oferta de Musk se desse numa companhia brasileira, estaria nas mãos dos acionistas decidir sobre a aceitação ou rejeição de oferta, sem que os administradores tivessem papel ativo e decisivo como no sistema americano.

É lógico que o dever de diligência (art. 153) reservado aos administradores pela lei das S.A. é incompatível com uma mera abstenção da parte deles mas a obediência a competência da Assembleia-Geral limita a ação dos administradores a emissão de opinião não vinculativa para auxiliar a decisão dos acionistas, sem o papel preeminente dos administradores de uma companhia americana.

Lá, com boa parte de companhias abertas com dispersão acionária, a legislação societária norte-americana atribui fartos poderes decisionais aos órgãos da administração.

Nas operações de take over, por exemplo: cabe ao board of directors decidir quanto a oferta recebida para aprová-la, ou não, e só em seguida pô-la em votação entre os acionistas reunidos em Assembleia-Geral se for o caso.

Aplica-se, por analogia, o mesmo que o §251 do Delaware Code (onde está instalada o Twitter e a maioria das grandes companhias americanas) determina como procedimento para as ofertas de fusão:

“(b) The board of directors of each corporation which desires to merge or consolidate shall adopt a resolution approving an agreement of merger or consolidation and declaring its advisability. (…)

c) The agreement required by subsection (b) of this section shall be submitted to the stockholders of each constituent corporation at an annual or special meeting for the purpose of acting on the agrément”.

Além disso, casos julgados pelo tribunal de Delaware delimitaram ao longo do tempo a extensão dos poderes e deveres da administração perante ofertas de tomadas de controle.

Em Unocal v. Mesa Petroleum Co. (1985), o tribunal determinou a responsabilidade legal do conselho de administração diante da oferta ao vedar-lhe uma conduta meramente passiva, e atribuindo-lhe de uma função de gatekeeper em operações de tomada de controle da companhia.

Em Moran v. Household International, Inc (1985), os juízes de Delaware selaram os planos de poison pill como instrumento legítimo de defesa da companhia, não cabendo ao Judiciário revisar a decisão dos administradores se não com base no padrão de revisão da business judgement rule (em que o judiciária analisa os procedimentos, e não o mérito ou conveniência das decisões empresariais).

A deferência do tribunal de Delaware aos administradores se justifica porque estariam em melhor condição para julgar se a oferta seria adequada. Os acionistas, ao contrário, enfrentariam limitações de (i) déficit informacional, já que não dispõem de ampla e fundamentada informação sobre os negócios da companhia; e (ii) dificuldade de coordenação para, em conjunto, negociar melhores condições para a oferta.

Portanto, entendem os julgados de Delaware, os acionistas estariam indefesos perante os chamados raiders, como são conhecidos os que adquirem o controle para realizar transferência de recurso a custo da empresa, acessar as marcas e patentes da nova controlada, e outras coisas do tipo.

O seminal Takeover Bids in the Target’s Boardroom, escrito por Martin Lipton em 1973, inspirou as decisões dos magistrados Delaware que vimos. Lipton defende que os administradores devem tomar a decisão conforme o seu juízo comercial e profissional, sem que estejam submetidos ao requisito absoluto de encaminhar a oferta para decisão dos acionistas.

Como conlui, “if the directors believe that a takeover is not in the best interests of the company as a business enterprise, there is no requirement that the takeover bid be submitted by the directors to the shareholders”.

A opinião de Lipton não é unânime, e enfrentou resistência de autores como Ronald J. Gilson e Lucian Bebchuk para os quais as medidas defensivas a tomada de controle não raro servem à defesa dos próprios administradores, e não das companhias.

Para esses autores, os administradores nem sempre tem a neutralidade e independência que o tribunal de Delaware historicamente defende. Restam-lhes interesses pessoais bem determinados (como a manutenção no cargo) que interferem em suas decisões na qualidade de administradores, a exemplo de quando rejeitam uma takeover bid pela ameaça de que o novo controlador substitua os membros do Conselho de Administração.

Por isso, parte da doutrina americana defende a participação de minoritários com capacidade de monitorar e exercer influência sobre a gestão da companhia para limitar a obtenção de benefícios privados pelos administradores.

No Brasil, ao contrário, as críticas vão noutra direção: o modelo de capital concentrado implica a existência de acionista controlador na maioria das companhias, ao passo que a legislação societária legitima o poder do controlador ao conferir extremos poderes à Assembleia-Geral em detrimento do Conselho de Administração, a exemplo da demissibilidade ad nutum dos administradores. “Infiltra-se, dessa forma, o poder de controle pela própria tessitura organizacional da administração”, como afirma Tavares Guerreiro.

A preponderância do controlador se refletiu na adoção das poison pills pelo direito brasileiro.

Como vimos no episódio de Elon Musk, o Conselho de Administração do Twitter criou plano que conferia aos acionistas direitos de aquisição de ações por preço inferior ao de mercado caso alguém adquirisse mais de 15% de ações da companhia. Mas esse é apenas uma das espécies de poison pills, a chamado “shareholder rights plans”.

Poison pills, na verdade, é um gênero que envolve diferentes estratégias à disposição dos administradores contra tomadas de controle hostis.

Já no Brasil, confundiram uma espécie com o gênero e poison pill se tornou o nome de uma estratégia praticada no Brasil que se assemelha ao “shareholder rights plans” da seguinte maneira: a chamada poison pill brasileira estabelece que caso alguém adquira determinado percentual de ações (15% por exemplo) está obrigado a realizar uma oferta pública tendo por objeto a aquisição da totalidade de ações da companhia em circulação no mercado.

A contradição é que a poison pill brasileira foi adotada por companhias que já tem controlador definido. Assim, em lugar de protegerem contra ofertas indesejadas de tomadas de controle, estava a serviço da manutenção e reforço do atual controle das companhias em exemplo cristalino do patrimonialismo nas relações privadas brasileiras

Dito de outro modo, e nas palavras de Carlos Klein Zanini: “a poison pill brasileira acabou defendendo precisamente aquilo que original­ mente pretendia combater: a manutenção de um bloco de controle concentrado”.

A obrigatoriedade de oferta para todos os acionistas inibia a aquisição de posição acionária relevante que ameaçasse o poder do controlador, seja esse um controlador majoritário interessado em evitar minorias barulhentas, seja um controlador minoritário ou bloco de acionistas (com controle fiado por acordo de acionistas) interesses em consolidar o poderio.

A confusão serviu para repisar o poder do controlador da seguinte maneira: (i) ao incorporar o gênero numa só espécie, obstruiu a importação de outras medidas defensivas a tomada de controle que serviriam a consolidação do poder difuso nas (poucas) companhias sem controlador; e (ii) ao retraduzirem o “shareholder rights plans” na poison pill brasileira, favorecem o controlador já que pode manter o controle sem a necessidade de aumentar o capital para gerar a diluição do acionista que recém-adquiriu determinado percentual de ações.

Felizmente, o contexto brasileiro das poison pills se alterou nos últimos anos. A começar pela doutrina que melhor apresentou as inúmeras poison pills ao mercado brasileiro, a exemplo da obra “Medidas Defensivas à Tomada de Controle de Companhias” lançada em 2011 pelo João Pedro Barroso do Nascimento

Além disso, controladores que adotaram a poison pill brasileira se arrependeram quando a crise de 2014–16 motivou a atração de investidores estratégicos, como fundos de private equity, que estavam dispostos a adquirir participações porém sem estender a oferta a totalidade dos investidores.

Fato é que as poison pill brasileiros vem se tornando cada vez mais raras e, desta vez, concentradas nas companhias brasileiras com capital disperso que se tornaram relativamente mais numerosas desde a criação do Novo Mercado.

Fica a lição de que soluções estrangeiras não podem ser simplesmente importadas já que, sem o devido endereçamento aos problemas pátrios, os institutos jurídicos transpostos acabam servindo a propósitos inversos.

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Rodrigo de Abreu Pinto

Nascido em Recife, é formado em filosofia pela FFLCH-USP e em direito pela PUC-Rio.