Em Defesa da CVM

Rodrigo de Abreu Pinto
9 min readFeb 2, 2022

A bolsa brasileira vivia uma inédita ascensão na virada para os anos 70. O governo recém-estabelecia uma política de incentivos fiscais para a aquisição de valores mobiliários. Os investimentos eram estimulados especialmente pelo desconto em impostos.

O Decreto-Lei nº 157/67 permitia ao contribuinte destinar parcela do imposto de renda para a aquisição de quotas de fundos de investimentos que aplicavam exclusivamente em ações e debêntures conversíveis. Já o Decreto-Lei nº 401/68 reduziu a tributação sobre os dividendos pagos pelas companhias abertas.

Eram políticas que estimulavam hábitos de poupança, em forma de participação acionária, numa economia marcada pela inflação, fenômeno incompatível com o investimento de longo prazo em renda variável. A ideia era de que “a captação forçada pode, assim, vencer as resistências criadas pela inflação, que corroeu, inexoravelmente, poupanças muitas vezes acumuladas com pesados sacrifícios”, como explicou o ex-diretor da CVM Marcílio Marques Moreira.

O efeito imediato foi o crescimento da demanda por valores mobiliários. A Bolsa do Rio de Janeiro viveu o boom entre 1971 e 72.

Isolante (2018) de Marcius Galan

Só que não demorou para que os incentivos se revelassem artificiais e desvinculados da oferta de valores pelas companhias. Se os preços das ações subiram de maneira vertiginosa, caíram numa velocidade ainda maior.

A credibilidade do mercado foi para o brejo. Os investidores se sentiram enganados, deixados para trás, em que se inclui a indignação com o regulador que não lhes proveu das informações suficientes e necessárias sobre o desastre em curso.

O mercado de capitais era então regulamentado pelo Conselho Monetário Nacional e fiscalizado pelo Banco Central. O arranjo era produto da Lei nº 7.728/65, tida como um marco na história do mercado brasileiro pela designação de autoridades responsáveis por normatizar e fiscalizar o mercado.

O passo seguinte seria a criação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Hélio Rubens Mendes explica o impacto do crash da Bolsa do Rio de Janeiro sobre o arcabouço jurídico-regulatório vigente:

“A crise gerou a conscientização de que a estrutura da regulação existente, realizado por uma Diretoria do Banco Central, não era mais suficiente para cuidar do mercado que havia se formado. Deveria haver uma entidade com capacidade técnica específica, responsável unicamente por fazer valer os interesses dos investidores, velando pela dispersão homogênea de informações no mercado”.

Foi então que a Lei 6.386/1976 criou a CVM com a missão de regulamentar e monitorar os mercados, além de investigar e punir as condutas ilícitas. Assim explicou o Ministro da Fazenda, Mario Henrique Simonsen, na Exposição de Motivos da lei:

“A experiência demonstrou que a defesa da economia popular e o funcionamento regular do mercado de capitais exigem a tutela do Estado, com a fixação de normas para emissão de títulos destinados ao público, divulgação de dados sobre a companhia emitente e negociação dos títulos no mercado. Além disso, é necessário que agência governamental especializada exerça as funções de polícia do mercado, evitando as distorções e abusos a que está sujeito”.

O boom da Bolsa do Rio de Janeiro engendrou uma série de negócios especulativos que desembocou no crash, e criação de uma “agência governamental especializada” foi uma resposta a isso. Uma narrativa que lembra a ocorrida nos Estados Unidos em torno da criação da Securities Comission Exchange (SEC) nos anos 30.

O artigo 4º da Lei 6.385 elencou as finalidades programáticas que a CVM deveria buscar satisfazer e, em contrapartida, o artigo 8º estabeleceu as competências e o 9º os poderes para o regulador desempenhar as suas funções de regulamentar e fiscalizar as companhias abertas e o ecossistema de corretoras, fundos de investimentos, agentes autônomos de investimento, auditores independentes, consultores e analistas que orbitam em torno dessas companhias e a poupança popular.

O exercício regular da CVM demonstraria que a Lei 6.385 não dispôs a estrutura necessária para o regulador desempenhar as suas funções. A CVM não foi criada como uma entidade autárquica em regime especial, tal como são as agências reguladoras, ficando privada da autonomia tanto administrativa, quanto patrimonial, em relação ao Executivo.

Em âmbito administrativo, o mandato do presidente e diretores não era fixo, estando continuamente expostos a demissão ad nutum. Em âmbito patrimonial, a CVM não gozava de receitas próprias que não precisassem passar pelo erário.

Isolante (vértice) (2018) de Marcius Galan

A primeira tentativa de reparo se deu pela Lei nº 7.940/89 que criou a taxa de fiscalização, cobrada diretamente dos participantes do mercado, com a finalidade de custear as atividades da CVM. A lei mobilizava a capacidade contributiva dos agentes que atuavam no mercado para o atendimento dos custos de seu órgão fiscalizador, em tese liberando a Autarquia da “necessidade de aportes de recursos do Tesouro nacional mediante consignação de dotações próprias no Orçamento Geral da União” como escreveu o ministro da Fazenda, Maílson da Nobrega.

Em complemento, a Lei 10.303/2001 editou o artigo 7º da Lei 6.385 para estabelecer as receitas das taxas dentre os meios de custeio às despesas necessárias ao funcionamento da CVM.

Por fim, a Lei 10.411/2002 classificou a CVM como entidade autárquica em regime especial, “com personalidade jurídica e patrimônio próprios, dotada de autoridade administrativa independente, ausência de subordinação hierárquica, mandato fixo e estabilidade de seus dirigentes, e autonomia financeira e orçamentaria”, como lemos na nova redação do artigo 5º da Lei 6.385.

O ministro da Fazenda, Pedro Malan, justificou as transformações mediante a “inadiável necessidade de modernizar o órgão regulador do mercado de capitais, como medida de incentivo ao desenvolvimento da economia nacional”. A despeito das boas intenções, as reformas não atingiram em cheio os seus objetivos.

Prova disso é o descaso com as vagas no colegiado da CVM, o órgão máximo de deliberação das regulamentos e jurisdição dos processos administrativos sanciones.

A reforma garantiu mandato fixo e estabilidade ao presidente e diretores da CVM, mas a discricionariedade negligente do Executivo em selecionar os 5 nomes do colegiado, bem como do Legislativo em aprová-los, ilustra o descaso institucional que atrapalhou os objetivos da reforma.

Como observou Viviane Müller Prado, no governo Dilma, o cargo de presidente permaneceu vago por 4 meses em 2012; no governo Temer, o colegiado atuou com um diretor a menos durante 7 meses em 2017; e no governo Bolsonaro, o colegiado da CVM passou boa parte de 2020 com apenas 4 membros e de 2021 com apenas três.

A coisa é ainda pior a respeito da suposta autonomia orçamentária da CVM. Numa análise do processo orçamentário, identificamos, grosso modo, as seguintes etapas: (i) a CVM elabora a sua proposta orçamentária; (ii) a proposta passa pelo Ministério da Fazenda, onde pode ser alterada com total discricionariedade, antes de seguir para a votação no Congresso; e (iii) os deputados votam o orçamento geral e podem modificar as previsões estabelecidas.

Conclusão: a Lei 10.303 transformou a CVM numa autarquia em regime especial, sendo que a análise in locus revela que o regulador é fortemente dependente das decisões discricionárias do Poder Executivo, limitando a sua autonomia.

O efeito mais paradoxal disso é que a verba disponível para a CVM é menor do que a autarquia arrecada em termos de taxas.

As taxas, como se sabe, são tributos vinculados ao financiamento de serviços públicos específicos, como as atividades de regulação, supervisão e fiscalização das agências reguladoras. No entanto, como explicam Isaac Costa e Henrique Leite em ótimo artigo sobre o assunto:

“Não há salvaguarda legal para que os valores arrecadados pela CVM decorrentes do seu exercício de poder de polícia permaneçam na autarquia para custear o exercício de suas atividades.

Tais valores retornam para o Tesouro Nacional e os recursos da CVM são pleiteados via dotações orçamentárias, o que faz com que a única fonte de recursos para a autarquia, na prática, sejam as “dotações que lhe forem consignadas no orçamento federal”, objeto de pleitos junto ao Executivo e ao Legislativo”.

Para ter ideia do absurdo, veja-se que, em 2020, o regulador recebeu cerca de R$ 264 milhões, embora tenha arrecadado uma receita vinculada de taxa de cerca de R$ 445 milhões. Em outras palavras: o Tesouro embolsou quase a metade do que a CVM recebeu de taxas para o custeio das suas atividades. Continuam Isaac e Henrique:

“Uma leitura apressada desta declaração poderia nos levar a concluir que o valor da taxa cobrada dos jurisdicionados da CVM tem sido desproporcional em face do custeio necessário para o exercício da atividade de poder de polícia.

Porém, como tais recursos têm sido destinados à Conta Única do Tesouro Nacional e a CVM tem sofrido sérias limitações no tocante ao montante autorizado e ao montante executado de suas despesas, o que se nota é uma espécie de captura dos seus recursos pelo Poder Executivo, esvaziando a previsão legal de autonomia orçamentária e financeira”.

Dias atrás, foi a vez do Congresso reduzir em quase 60% a verba para o Ministério da Economia que, em seguida, cortou quase R$ 14 milhões de despesas discricionárias da CVM. Restaram apenas R$ 12 milhões, o que representa menos da metade do orçamento do ano passado (R$ 26 milhões).

Ao contrário das despesas com pessoal, as despesas discricionárias estão sujeitas a cortes. São verbas destinadas a contratar funcionários terceirizados, investir em sistemas de informática, incorporar soluções tecnológicas como inteligência artificial.

Sem isso, crescem os riscos operacionais das atividades de supervisão e fiscalização, além de tornar todo e qualquer processo mais demorado. Atualmente estão pendentes de análise 21 ofertas primárias (IPOs), 26 pedidos de análise de registro de companhias abertas e 17 pedidos de ofertas secundárias, segundo informações do Estadão.

Isolante (expansão) (2018) de Marcius Galan

Isso não poderia ocorrer em pior hora. De um lado, os perímetros regulatórios cada vez menos claros e uma porção de ativos, agentes e mercados à margem de qualquer regulação. De outro lado, o país em meio a uma retomada econômica que demanda um mercado de capitais relevante para financiar os agentes produtivos.

Entre ambos, os pequenos investidores que aprenderam a confiar no mercado de capitais para a formação da sua poupança de longo prazo. Ao contrário dos investidores compulsórios do boom de 1971–72, os atuais investidores não investem por causa de incentivos fiscais, mas porque acreditam no potencial das companhias e do mercado brasileiro. Então que fique claro: impossibilitar o trabalho da CVM é prejudicar o mercado de capitais, a poupança pública e o desenvolvimento sustentável do país.

Desde o anúncio dos cortes, assistimos uma bonita mobilização de diversos agentes: a OAB encaminhou uma nota pública ao Congresso; Amec e Abrasca enviaram uma carta conjunta aos deputados; o ex-presidente da CVM, Marcelo Trindade, apelou em coluna no Valor Econômico que os regulados recorressem ao STF ou, em último caso, que o eventual convidado para substituir o atual presidente na presidência a partir de julho deveria recusar o convite; e o diretor da CVM, Alexandre Rangel, escreveu um artigo no Brazil Journal em que sugeriu, dada a relevância e urgência do tema, a edição de uma Medida Provisória que estabelecesse a vinculação das taxas ao propósito para a qual foram criadas.

O Brazil Journal noticiou que o barulho fez efeito e a Junta de Execução Orçamentária teria publicado decisão atendendo quase integralmente o orçamento proposto pela CVM para 2022. Se a discussão ainda assim é pertinente, é porque o problema é estrutural e está prestes a retornar no próximo exercício.

Retomo a sugestão do diretor Alexandre Rangel e substituo a Medida Provisória por um Projeto de Lei, que (i) estabeleça salvaguardas para que o valor arrecado pelas taxas permaneça na autarquia para custear o exercício das suas atividades e (ii) garanta autonomia na elaboração da proposta orçamentária ao vedar os contingenciamentos por ato do Ministério da Economia.

A última vez que se tentou algo parecido foi pela Medida Provisória 784/2017, editada pelo presidente Michel Temer, que criava um fundo de desenvolvimento do mercado administrado pela CVM e financiado com recursos dos termos de compromisso. Concordo com Bernardo Appy e Marcelo Trindade que naquela altura defenderam que “tampouco é adequado que as multas impostas no exercício da fiscalização constituam receita das agências, uma vez que esse desenho cria um incentivo distorcido a que as agências ampliem as multas como forma de superar restrições orçamentárias”. A meu ver, muito mais razoável é a proposta de tornar efetiva as taxas de fiscalização como custeio direto da atividade da CVM

Se, lá atrás, foi necessário criar a autarquia para perseguir a credibilidade do mercado, agora é necessário provê-la dos meios para a manutenção dessa credibilidade reconquistada ao longo dos quase 50 anos da CVM.

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Rodrigo de Abreu Pinto

Nascido em Recife, é formado em filosofia pela FFLCH-USP e em direito pela PUC-Rio.