Em defesa do indefensável
O que mais surpreende nesta história senão a falta de inteligência política do STF? A insensibilidade ao razoável não é inédita, a novidade é que nunca foram tão capazes de atender os interesses contrários: o Supremo está desmoralizado, assim como queriam seus detratores.
O custo real quem orçará é o futuro da democracia brasileira. Menos pela censura, mais pelo abalo ao próprio STF. Afinal, quem deprava a democracia é também quem pode melhor defendê-la. É certo que tomaram decisões equivocadas desde a instalação do inquérito, em especial a disritmia quanto ao Ministério Público. Não é menos certo que os ministros deram o primeiro passo contra as fake news que manipulam fatos e opiniões sem qualquer responsabilização ou aprimoramento técnico para coibi-las. Mas e agora? A opinião pública repudiou a censura e dificilmente as mensagens de ódio contra o tribunal serão interpretadas como o que realmente são: ameaças à democracia. “Eles merecem isso mesmo”, é o que dirão, mas não é pouca coisa a defesa da independência do Supremo e da integridade física dos ministros.
Em minha opinião, acho que o STF está certo em tomar uma atitude contra quem usa a liberdade irrestrita da internet para encurralar o tribunal. A defesa da democracia é simultânea a descoberta de estratégias para atenuar os efeitos do ódio tirânico e das fake news . Por exemplo: ainda não descobrimos como garantir que direito de resposta alcance a mesma exposição que a postagem mentirosa. Ainda assim, enquanto não sabemos bem como reagir, o Supremo não pode atropelar e resolver de qualquer maneira. Quantas pessoas não foram difamadas por delações mentirosas? Quantas vezes a mesma corte fingiu que não viu a divulgação de grampos ilegais? Quando o MP vaza informações seletivas (“o amigo do amigo do meu pai”) e os ministros insurgem também seletivamente, resta a péssima sensação de que o STF não está à altura dos desafios que somente batem à porta.
Não são poucos os abusos, desde a falta de diálogo com o MP ao instaurar a ação penal quanto o bloqueio do conteúdo sem amplo direito ao contraditório. Marco Aurélio falou em “mordaça”. Celso de Mello em “prática ilegítima e intolerável”. Carmen Lúcia, a mesma do “cala boca já morreu”, afirmou que “toda censura é incompatível com a democracia”. A escolha sem sorteio de quem presidiria o inquérito e a decisão de instaurá-lo fora do colegiado relembra outras decisões monocráticas recentes, basta citar o habeas corpus de Marco Aurélio aos presos em 2ª instância, o financiamento privado das eleições de 2014 imposto por Gilmar Mendes ou, no pior dos casos, Luiz Fux que garantiu, sozinho, o pagamento de auxílio-moradia aos juízes por cinco anos. Espero deixar claro que não sou míope quanto os excessos injustificáveis da corte, mas passo longe de quem grita muito alto ao criticá-los.
Pouca gente compareceu nas manifestações a favor do golpe de 1964 ou contra a decisão do Supremo a favor da Justiça Eleitoral. Observando a colossal reação contra a censura, Maria Cristina Fernandes reconheceu que “o ministro Dias Toffoli conseguiu algo que nem o presidente da República vinha se mostrando capaz, reacender a militância bolsonarista na defesa da revolução justiceira representada por sua eleição”. Ao menos nos próximos dias, não é Bolsonaro quem expõe jornalista ou proíbe veículos de entrevista-lo, mas o STF que reprimiu a liberdade de expressão. Não é Bolsonaro quem esgarçou a lei de valorização sistemática do salário mínimo, mas o Supremo que decretou um aumento de 16% no próprio teto salarial. Não é Bolsonaro quem emprega e convive com milicianos, mas Gilmar Mendes e Dias Toffoli quem mantiveram relações espúrias com réus.
A popularidade do presidente declinou mas ainda supera o STF: 32% contra 18%. A Lava Jato é considerada ótima ou boa por 61% dos brasileiros. Olhando os dados, a tese de Demetrio Magnoli parece fazer sentido: “Bolsonaro flerta alegremente com a engrenagem, sem se dar conta de que seu governo é apenas uma escala técnica na rota imaginada pelo Partido dos Procuradores.” Eu discordo. Acho que o projeto de poder da República de Curitiba implica a simbiose com Bolsonaro. Não apenas porque o grosso dos que defendem a Lava Jato nas ruas são bolsonaristas, mas porque correm o risco de perder o timing de fincarem raízes no centro, tal como ocorreu com os membros da Mãos Limpas que tardaram em sair do quadrado e perderam espaço no coração da política. A decisão de Moro em assumir o ministério da Justiça e a quantidade de nomes que os curitibanos já sugeriram para a vaga na PGR são provas da escalada ao poder. Como ficou claro na recente extinção do fundo bilionário sediado em Curitiba, o Supremo é quem pode pôr água no chope de Deltan Dallagnol. Por isso, não surpreende a dedicação dos lava-jatistas em desestabilizar a corte, tanto ao desidrata-los publicamente quanto fragmentando o conjunto dos ministros. A melhor definição é de Luiz Werneck Viana: tenentismo togado.
Os curitibanos apostam nas mesmas estratégias vitoriosas que aplicaram nos últimos anos contra seus inimigos (em especial o PT). O STF, quando teve a chance, foi conivente, e agora o bicho virou onça e a vara em mãos é curta. Vamos recapitular o modus operandi da Lava Jato. Fazendo coro a uma indeterminada “voz das ruas”, enquanto se consideravam os seres iluminados aptos a interpreta-la, os juízes de Curitiba tomaram decisões à revelia da solução normativa prevista. A justificativa? As garantias jurídicas, levadas ao pé da letra, são empecilhos à “luta dos justos”. Quem defendesse os direitos em sua plenitude, em detrimento da “doutrina jurídica do clamor das ruas”, seria não apenas conivente com a corrupção, mas contra “a janela de oportunidades que Deus está abrindo”, de acordo com a cosmovisão de Dellagnol.
Foi através desse moralismo farisaico que plasmou-se uma visão do direito exposta didaticamente pelo desembargador federal Rômulo Puzzolatti: “Os processos e investigações criminais decorrentes da chamada “Operação Lava-Jato”, sob direção do magistrado representado, constituem caso inédito (único, excepcional) no direito brasileiro. Em tais condições, neles haverá situações inéditas, que escaparão ao regramento genérico, destinado aos casos comuns”. Fica claro como a Lava Jato alimentou um sentimento anti-institucionalidade capaz de nutrir as figuras de Moro e Dallagnol como lideranças que podem agir acima da lei, pois não há outro modo de restaurar o sistema. Comportamentos anti-institucionais são permitidos porque realizados em nome da própria institucionalidade — que renascerá “renovada” ao final do processo — a exemplo da divulgação ilegal de grampos sigilosos; conduções coercitivas espetaculosas; delações induzidas de investigados da Lava Jato; desacato a decisão de desembargador plantonista; liberação de delações sem nenhum valor probatórios às véspera das eleições; vazamento de dados fiscais confidenciais.
Recentemente, a Receita investigou sem justificativas os dados secretos de Gilmar Mendes e insinuou suposta fraude fiscal. O ministro contra-atacou: “O lavajatismo invadiu a Receita Federal. Criaram uma força-tarefa branca.” Agora, o vazamento da delação que cita Toffoli, antes mesmo do depoimento chegar na Procuradoria. O desgaste dos ministros desobstrui os caminhos de Bia Kicis, deputada do PSL que está coletando assinaturas para a “PEC da Bengala” que aposenta os ministros aos 70 anos, o que na prática permitiria que Bolsonaro indicasse não 2, mas 4 ministros até o fim do mandato. Ainda assim é pouco, já que o presidente queria “passar pra 21 ministros, para botar pelo menos dez isentos lá dentro”, como disse durante a campanha, justificando que a corte “lamentavelmente têm envergonhado a todos nós nos últimos anos”. Mas o número pode subir, caso os senadores da “CPI da Lava Toga” conquistem o sonhado impeachment de alguns ministros. Na mesma semana em que o STF cassou as publicações da Crusoé, Eduardo Bolsonaro visitou Órban, presidente da Húngria que alterou as regras de nomeação e subiu o número de juízes da Corte Constitucional, consumando a maioria com partidários ao conservadorismo do seu governo.
Nos próximos dias, o STF decidirá as várias ações que pretendem anular o inquérito aberto pelo presidente da Corte. O relator sorteado foi o ministro Edson Fachin, o mesmo que ano passado solicitou proteção adicional quando ele e seus familiares foram ameaçados. As ações envolvem tanto mandados de segurança pela suspensão do inquérito, quanto habeas corpus coletivos que desobriguem os investigados de deporem. Se o STF errou ao não acertar os ponteiros com Raquel Dodge, o barulho causado pode fragilizar ainda mais a democracia caso paralise qualquer consequência efetiva da ação contra as fakes news. Penso que melhor seria se o Inquérito sofresse ajustes democráticos, sobretudo com a participação do MP, ou que os ministros somasse esforços aos parlamentares que estão discutindo a criação de uma CPI para investigar ataques cibernéticos aos três poderes (confome noticiado por Monica Bergamo).
Abundam exemplos recentes em que o Supremo abandonou a vocação garantista e aquiesceu às vaidades pessoas dos ministros e pressões externas, seja das ruas, seja de outros poderes e forças que chantagearem o tribunal. As instituições brasileiras nunca funcionaram bem, mas sabemos que essa não é a única forma de um sistema político funcionar e por isso almejamos construir uma proposta de reforma conjunta das instituições brasileiras. No entanto, enquanto não existem condições democráticas de levar tal intento a cabo, é preciso defender os esteios que sustentam a bola rolando (do mesmo modo que defender o “presidencialismo de coalizão” se tornou uma jogada democrática). Desde a eleição de Bolsonaro, o STF mostrou que pode funcionar como um dique contra avanços autoritários. Ao julgar os casos do veto às manifestações políticas em universidades e da criminalização da homofobia, importou manter os canais democráticos abertos, as minorias protegidas e o direito de manifestação intacto. Contra o projeto descabido da extrema-direita brasileira, é isso que por ora nos cabe.