Pelo reencantamento do mercado de capitais brasileiro
Não é mais novidade que os grandes investidores institucionais (fundos de investimento, fundos de pensão, bancos, seguradoras) incorporaram as pautas ESG em seus discursos, bem como em suas carteiras.
Só nos últimos três anos, três documentos traduzem o estado da arte: a declaração do Business Roundtable (2019), o Manifesto de Davos (2020) e a carta ‘zero carbono’ de Larry Fink (2021). Em comum, a reinterpretação dos ‘propósitos da empresa’ para além dos interesses dos acionistas feita pelos principais gestores das finanças globais.
Para quem acha que o Brasil tem pouco a ver com isso, o profº. Marcelo Trindade apresentou os seguintes gráficos em recente apresentação no Seminário de Direito da PUC-Rio:


Money talks, e o Brasil está ouvindo: o apetite dos investidores institucionais brasileiros ainda é incipiente, mas a participação dos estrangeiros (vide os gráficos acima) está transformando o mercado.
A bolsa brasileira já oferece inúmeros índices comprometidos com parâmetros ESG, a exemplo do S&P B3 Brasil ESG que recentemente excluiu a rede de supermercados onde um negro foi assassinado pelos seguranças.
Já dispomos de um cardápio variado de fundos com oferta de investimentos associados a fatores ESG. A doutrina brasileira, por sua vez, está reinterpretando os deveres fiduciários do gestor de fundos para desabonar a visão de que investimentos ESG seriam contrários ao melhor retorno lucrativo e, portanto, contrário ao interesse dos clientes.
Tudo isso apoiado em nossa lei societária que desde os anos 70 fala em “responsabilidade social”, “exigências do bem público e da função social da empresa”, “respeito aos direitos e interesses dos trabalhadores e da comunidade onde atua”. Está nos artigos 116 e 154 da lei.
Sobre a potência da Lei das S.A., Luiz Antônio de Sampaio Campos destacou que “a discussão de legislações estrangeiras sobre sociedades anônimas e questões ESG é apenas mais um exemplo eloquente deste fato”.
Assim afirma porque nos Estados Unidos, por exemplo, abundam as discussões sobre a necessidade de revisão da Investment Advisers Act (1940) que atrelaria, unilateralmente, os deveres fiduciários dos administradores ao shareholder value maximization.
O caráter visionário de Lamy e Bulhões, autores do anteprojeto da Lei das S.A., estava em perceber que a finalidade lucrativa e o cumprimento da função social se complementam. O fortalecimento da sociedade e do meio ambiente em que as companhias se inserem respondem ao interesse econômico de longo-prazo dessas mesmas companhias.
Por essa ótica, as normas e padrões ESG conformam uma estrutura jurídica destinada a promoção dos investimentos. Parte-se da premissa de que na ausência de um regime adequado de tutela do futuro da sociedade e dos próprios investidores, esses não estarão dispostos a aplicar seus recursos poupados em investimentos de longo prazo.
Apoiando a agenda ESG, a CVM então cumpre sua atribuição, prevista no art. 4º da Lei 6.385/76, de “promover a expansão e o funcionamento eficiente e regular do mercado de ações, e estimular as aplicações permanentes em ações do capital social de companhias abertas sob controle de capitais privados nacionais”.

Ótima notícia que a CVM tenha se debruçado sobre as regras de divulgação de informações ESG para melhor adaptá-las ao Formulário de Referência (documento que as companhias abertas disponibilizam anualmente aos investidores) no momento em que os fatores sociais e ambientais se tornam crescentemente relevantes à tomada de decisão.
Em 2014, a CVM tornou obrigatória a divulgação de informações sobre as políticas socioambientais no Formulário de Referência por meio da Instrução CVM 522.
Desta vez, a recém-lançada Resolução CVM 59 desmembrou as informações “socioambientais” de acordo com a sigla ESG, exigindo a prestação de informações sobre as políticas sociais, ambientais e climáticas das companhias, além de dados sobre a diversidade do corpo de empregados e terceirizados.
A exigência corrige assimetrias informacionais ao conferir ferramentas necessárias à comparação entre as companhias. O investidor, assim, toma decisões melhor alinhadas às suas preferências. Como ensina André Pitta, “o regime informacional obrigatório tem por premissa que o emissor consegue produzir e disseminar informações a seu respeito a um custo inferior àquele que seria incorrido pelos investidores diretamente, caso buscassem individualmente a mesma informação”
É verdade que há empecilhos que dificultam a comparação como a falta de padronização nas métricas de avaliação de fatores ESG. Mas a União Européia é um exemplo de como o avanço é progressivo: em 2019, editou o Sustainable Finance Disclosure Regulation (Regulamento 2019/2088/EU) que obrigou os players a divulgarem os riscos climáticos dos ativos e estratégias de alocação de recursos; em 2020, editou a Taxonomy Regulation (Regulamento 2020/852/EU) que estabeleceu critérios para aferir se determinada atividade econômica é ambientalmente sustentável.

Ao lado das informações ESG, as demais novidades da Resolução CVM 59 estão voltadas para a redução do custo de observância dos emissores pela redução ou simplificação das informações exigidas.
A princípio, pode parecer contraditório que a CVM reduza os custos de observância ao mesmo tempo que adiciona exigências ESG que aumentam esses mesmos custos (gastos com pessoal e assessoria técnica para atualizar periodicamente as informações, por exemplo).
Além de contraditório, imprudente: o aumento dos custos, afinal, ocorre ao passo que o mercado e as companhias brasileiras enfrentam a concorrência das bolsas estrangeiras pela atração dos investidores institucionais.
Em âmbito interno, a concorrência se traduz nos investidores brasileiro diante de um cardápio variados de investimentos que inclui os BDRs, os títulos do Tesouro com Selic em alta e os criptoativos, além das ações das companhias brasileiras.
A crítica a elevação dos custos acertaria no alvo se não fosse o fato de que a divulgação de práticas de ESG aumentam o interesse dos investidores nas ações das companhias.¹
“Se no início dos anos 2000 pareceu ser necessário valorizar o acionista individual (minoritário) e seus direitos para fazer ressurgir o mercado brasileiro e o interesse na aplicação em ações de novas companhias (tentativa muito bem-sucedida na primeira década do século XXI muito por conta exatamente da criação do Novo Mercado), agora parece fundamental dar guarida a outros interesses (sociais/ambientais) envolvidos pela sociedade anônima”, escreveu Calixto Salomão.
Não adianta que o regime jurídico se preocupe em reduzir os custos se não estabelece os incentivos adequados a atração dos investidores, inclusive em contraste com outras jurisdições que compreenderam o ESG como condicionante da alocação de recursos e investimentos.
A Resolução CVM 59 é elogiosa, mas só entra em vigor em 2023 para que os emissores tenham tempo de se preparar. A ausência de referência a ESG na Agenda Regulatória 2022 da CVM é sinal de que não teremos novidades até lá? Está mais do que na hora de que o país que se tornou exemplo mundial pelas cotas sociais e raciais faça o mesmo com o ESG.