“Favor manter reservado”: o fim da operação Lava Jato

Rodrigo de Abreu Pinto
5 min readJun 14, 2019

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Quando Julian Assange vazou arquivos confidenciais das operações americanas no Iraque, lembro que Zizek comentou algo como: “não é que ninguém soubesse, é que agora ficou impossível dizer que não sabe”. Trazendo para o caso brasileiro, não é que ninguém soubesse que a Lava Jato era imparcial, mas aceitar essa mesma imparcialidade se tornou impossível.

A reportagem do Intercept sobre as relações espúrias entre membros da Lava Jato, em especial o juiz Sérgio Moro e o procurador Deltan Dallagnol, emoldurou e pendurou na parede a simbiose ilícita entre Judiciário e Ministério Público. Quem achava que criticar a Lava Jato era coisa de petista, pode ler e reler as mensagens até se convencer que um juiz que orientou, antecipou decisões e até cobrou providências do procurador não é normal.

Quando o juiz se torna parte acusatória e elimina a equidistância entre as partes, revelando favoritismo por uma e discriminação injustificada pela outra, o restante do julgamento não é mais que a instrumentalização daquela vontade premeditada. A promiscuidade entre juízes e procuradores foi tamanha, exposta em vários diálogos sobre provas, testemunhas e estratégias eleitorais, que assombrou inclusive quem até então aplaudia o comportamento ambíguo da operação.

Digo “ambíguo” porque a ética da Lava Jato se baseava, por um lado, na consciência quanto a debilidade do judiciário em punir os criminosos de colarinho branco. E por outro, na pressuposição implícita de que as garantias jurídicas, levadas ao pé da letra, eram os empecilhos de que se valiam aqueles para inibir as consequências das investigações. Como Moro fez questão de afirmar, “a presunção de inocência, no mais das vezes invocada como óbice a prisões pré-julgamento, não é absoluta”.

Foi por meio dessa retórica que ele e Dallagnol se constituíram como lideranças que poderiam agir segundo a lógica dos fins justificam os meios: os comportamentos anti-institucionais eram permitidos porque realizados em nome da própria institucionalidade. Durante a operação, à medida que o moralismo farisaico se confirmava como um poderoso excludente de ilicitude, todo um rol de desvios se tornou escusável como conduções coercitivas, prisões preventivas, delações induzidas, vazamento de depoimentos sem valor probatório.

Quem por acaso fosse contra essas estratégias para lá de heterodoxas (o mesmo que defender o direito em sua plenitude), seria não apenas mal-intencionado e conivente com a corrupção, mas estaria desperdiçando “a janela de oportunidades que Deus está abrindo para mudanças”, como assegura a cosmovisão de Dallagnol. A Lava Jato, melhor dizendo, se tornou uma fábrica de conversão do desvio em virtude, bem adaptada ao voluntarismo salvacionista dos líderes para quem “seus sinais conduzirão multidões”, como disse novamente Deltan numa das mensagens para Moro.

Ainda assim, os desvios resguardavam o controverso caráter de excepcionalidades. Por desvios excepcionais, quero indicar os comportamentos que embora quebrem a regularidade, não desestruturam a forma por completo. A divulgação ilegal dos grampos de Dilma e Lula, por exemplo, situou-se no limite da regra (“era melhor decisão, mas a reação está ruim” disse Moro). Para além disso, como escreveu o advogado Horácio Neiva, “o desvio reiterado de regras seria uma estratégia autodestrutiva porque, afinal, ainda era de processo que estávamos falando”.É óbvio que ninguém esperava que fosse assim, mas o que as mensagens revelaram foi justamente o caráter compulsório dos desvios, a ponto moralismo farisaico dos membros já não suplantarem os desvios.

Não parece exagero afirmar que a Lava Jato acabou, sobretudo se lembrarmos que o seu enfraquecimento não começou agora. A derrocada começou desde a guinada de Michel Temer e Raquel Dodge ao poder, passando pela implosão das cooperações internacionais e a anulação do fundo bilionário coordenado pelo MP de Curitiba, até as recentes derrotas no STJ que suspendeu a prisão preventiva de Temer. Mesmo as últimas manifestações em defesa da Lava Jato, logo após o STF decidir que a Justiça Eleitoral deve julgar crimes de corrupção se houver caixa 2, já foram bem esvaziadas. Agora, mesmo que a operação revele novos esquemas de corrupção, qualquer notícia parecerá cortina de fumaça e mais valerá a especulação sobre as combinações ocultas que levaram a Lava Jato até ali.

Para piorar, o modo como Moro e Dallagnol reagiram às acusações não ajudou. Em lugar de partir para a defesa dos métodos, afirmando que eram os únicos possíveis caso realmente quisessem fazer o que a Lava Jato fez (é isso que o núcleo duro dos apoiadores realmente esperam), eles assumiram o papel de imperadores ofendidos. Tal como Marcelo Odebrecht (quem notou essa semelhança foi o jornalista Thomas Traumann), acusaram a ilegalidade dos vazamentos e a desonestidade da mídia, exalaram arrogância e se disseram ofendidos e perseguidos com a suspeita. Quem duvidar, basta ler os twitters de Moro e Dallagnol e vai notar os apuros de quem não sabe denunciar mais do que a invasão de celulares de maneira criminosa. Ou melhor, os apuros de quem perdeu a iniciativa de fala e a manipulação da opinião pública, ainda mais que os jornalistas do Intercept avisaram que vão soltar as notícias passo-a-passo.

Em entrevista para o Estadão (14/06), o ex-juiz insistiu que “a tradição jurídica brasileira não impede o contato pessoal e essas conversas entre juízes, advogados, delegados e procuradores”. É verdade que não faltam exemplos de depravações na tradição jurídica brasileira, desde lobbies para nomeação das filhas como desembargadoras (Luiz Fux e Marco Aurélio) até o acúmulo ilícito de gratificações (Wilson Witzel). No entanto, não apenas comparar com outros exemplos não vai ajudar, como são coisas bem diferentes pergunta ao juiz coisas do tipo “Juiz, o senhor está em seu gabinete? Posso passar para despachar uma petição?”, do que dizer coisas em que ao final é preciso lembrar “favor manter reservado”.

Se o futuro da Lava Jato está selado, fica a dúvida quanto ao passado: não em termos de reputação (essa já era), mas das próprias decisões proferidas. O primeiro vazamento do Intercept mostrou mais claramente a imparcialidade no caso do ex-presidente Lula, mas as mensagens reveladas em seguida apontam que a comunicação entre Moro e Dallagnol se estendia por toda operação. Embora a constituição tenha sido vilipendiada nos últimos tempos, caso o Judiciário leve em conta o que diz o quinto artigo, toda a Lava Jato deveria ser anulada. Afinal, “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

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Rodrigo de Abreu Pinto
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Written by Rodrigo de Abreu Pinto

Advogado (PUC-Rio) e Filósofo (FFLCH-USP). Diretor de Inovação da Câmara de Comércio Brasil-Portugal.

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