Hegemonia restaurada: Microsoft, IA e Assistentes Pessoais

Rodrigo de Abreu Pinto
5 min readMay 31, 2024

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A Microsoft lançou uma nova coleção de computadores pessoais em sua conferência anual, a Microsoft Build, recém-realizada em seu campus em Washington.

O CEO Satya Nadella abriu o evento e relembrou os anos 90. Fez questão de dizer que o Windows 95 foi apresentado pela primeira vez naquele mesmo espaço. Nada muito diferente do que fez quando subiu ao palco no Microsoft Surface and AI Event há poucos meses e exclamou: “é como se os anos noventa estivessem de volta”.

Ambos os momentos têm em comum a hegemonia da Microsoft. Se os anos 90 representaram o auge do sistema operacional Windows, a Microsoft então desponta pela integração da IA da OpenAI em seus produtos, sobretudo desde que se tornou a principal acionista da desenvolvedora do ChatGPT.

A insistência de Nadella em saltar entre os momentos é por causa do hiato que os separa. Ao longo dos anos 2000, o sucesso resultou em inércia à medida que a Microsoft permaneceu amarrada ao desafio de preservar o market share do Windows. Como outro lado da mesma moeda, a Microsoft perdeu de vista as fronteiras tecnológicas recém-abertas pela internet (como as ferramentas de busca e a computação em nuvem) e pela nanotecnologia (como os smartphones e tablets).

Só na década seguinte, a Microsoft correria atrás do prejuízo. Tanto pelo investimento em computação em nuvem a partir da criação do Microsoft Azure, quanto pelo lançamento de sua própria linha de computadores pessoais e tablets Surface.

A oposição entre o Azure e o Surface é que a computação em nuvem desacelera o consumo de computadores pessoais. Afinal, basta uma boa conexão de internet para que o usuário acesse arquivos e apps diretamente na nuvem, sem a necessidade de armazenar os arquivos. Um exemplo prático disso é que ninguém mais guarda músicas no próprio pc já que elas estão facilmente disponíveis no Spotify, Youtube, iCloud.

O sucesso da computação em nuvem explica por que as pessoas passaram a demorar mais tempo para trocar os seus computadores. E explica também por que a Microsoft passou a concentrar os seus esforços no Azure, e não mais no Surface.

Sequer a Microsoft poderia prever o acerto em que isso daria. O crescimento do Azure qualificaria a Microsoft como uma parceira ideal para o desenvolvimento de inteligência artificial. Em 2019, Microsoft e a OpenAI estabeleceram uma parceria estratégica em que os modelos de IA do ChatGPT foram hospedados no Azure, enquanto a Microsoft investiu na empresa e integrou a API do ChatGPT em seus aplicativos, em especial o Copilot.

Basicamente, o Copilot é um assistente pessoal que fornece auxílio personalizado e alimentado por IA aos usuários do Windows. O seu grande diferencial é que integração entre o Windows e o IA permite a interação direta do Copilot com várias funções e aplicativos do sistema operacional. Se o usuário está a redigir um e-mail, o Copilot sugere frases ou correções; se deseja agendar uma reunião, basta solicitá-lo via comando de voz; se é o caso de organizar os documentos ou gerenciar as janelas, o Copilot está à disposição.

Em suas apresentações, Satya Nadella já apresentou a visão de que o futuro não será baseado em carros sem motoristas ou robôs domésticos, mas assistentes pessoais superinteligentes que “não apenas nos entendem, mas podem antecipar o que queremos e nossas intenções”. É isso que o Copilot quer ser.

Não por outra razão, a principal novidade apresentada na Microsoft Build foram justamente os computadores pessoais denominados de Copilot+Pc. O nome causa estranheza, mas traduz com precisão que os novos computadores integram a IA do Copilot diretamente em seu hardware.

O Copilot+Pc é equipado com o Snapdragon X Elite da Qualcomm, um chip que conta com uma Neural Processing Unit (NPU) capaz de realizar operações de IA com muito mais eficiência do que as unidades tradicionais (CPU e a GPU). Além da própria linha Surface da Microsoft, outros fabricantes que operam com o sistema operacional Windows produzirão computadores Copilot+Pc, como a Dell e a Lenovo.

O principal efeito do chip atrelado ao seu próprio hardware é que o Copilot+Pc pode realizar as complexas tarefas de sua IA sem estar conectado na internet. Em outras palavras: o Copilot+Pc é independente da computação em nuvem, ao menos para rodar modelos de IA mais simples (treinados por um conjunto de dados com menos variáveis).

Via de regra, o ChatGPT e as outras ferramentas de IA generativa são executadas em plataformas de nuvem, mais habilitadas para o processamento de grandes volumes de dados e cálculos complexos. Por outro lado, quando o processamento da IA é realizado localmente, a não-necessidade de recorrer aos serviços de nuvem resultam em vantagens de (i) velocidade; (ii) privacidade; e (iii) custos.

(i) Velocidade: a execução de modelos de IA localmente reduz a latência, bem como as eventuais interrupções que ainda ocorrem quando as consultas são alimentadas na nuvem.

(ii) Privacidade: a atuação do algoritmo offline, associado ao armazenamento das informações em disco criptografado no próprio pc, protege as informações dos usuários contra os riscos de monitoramento e vazamento de dados (ao menos em tese, já que analistas da Wired destacaram os riscos à privacidade da nova tecnologia da Microsofot).

(iii) Custos: a repartição das operações de IA em âmbito local, e não apenas na nuvem, diminui os custos associados à manutenção dos data centers, onde estão armazenados os dados e os processadores de IA disponíveis na nuvem.

Dessas vantagens decorrem usos das IAs que até então eram impossíveis. O melhor exemplo é o Recall, o novo recurso do Copilot que promete armazenar tudo que o usuário vê e faz para transformá-lo em dados pesquisáveis — um recurso que seria impensável sem as vantagens associadas à privacidade e custos.

Esse Copilot turbinado desafia as previsões iniciais de que a Alphabet e/ou a Apple desenvolveriam as melhores ferramentas de IA para aplicação no dia-dia, como um assistente pessoal. Se a Alphabet largava na frente pela integração das ferramentas de e-mail, docs, calendário, meets associados à conta Google, a intimidade entre os usuários e a Siri em seus Iphones e Macbooks era o trunfo da Apple.

Ao contrário disso, as trapalhadas da Google a cada lançamento (a exemplo dos vários problemas relatados pelos usuários no recém-lançado AI Overview) e a carência de novidades da Apple em IA contrastam com os avanços a passos largos da Microsoft. Mas ainda é cedo para admitir que Satya Nadella está certo sobre uma hegemonia da Microsoft semelhante aos anos 90?

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Rodrigo de Abreu Pinto

Advogado (PUC-Rio) e Filósofo (FFLCH-USP). Diretor de Inovação da Câmara de Comércio Brasil-Portugal.