Hierarquia e funções na Sociedade Anônima: a autonomia condicionada dos administradores

Rodrigo de Abreu Pinto
4 min readJun 2, 2022

É conhecida a teoria de Ronald Coase sobre a origem da empresa.

No clássico The Nature of the Firm, o economista britânico explica que, em lugar de realizarem as transações de forma descentralizada por meio de contratos individuais, os empresários organizaram uma estrutura complexa que racionaliza a produção e reduz os custos de transação. Assim nasceu a empresa.

Pela lente coseana, pode-se dizer que o direito societário é o regramento desta comunidade de pessoas que se associam com o intuito específico de atingir um determinado fim econômico com a maior eficiência possível.

Movimento (1951) de Waldemar Cordeiro

O imperativo de eficiência determina a organização das companhias em torno de dois princípios: a distribuição de poderes e a divisão hierárquica.

A distribuição de poderes, funções e cargos é pressuposto inafastável para a eficiência de qualquer ente coletivo. A hierarquia, por sua vez, organiza normativamente as funções por relações de subordinação.

Daí que a capacidade de determinar e orientar a ação coletiva com eficiência é consequente ao fato de que alguns indivíduos exercem o poder sobre outros, que têm o dever de cumprir as instruções recebidas. Nas palavras de Coase, “the operation of a market costs something and by forming an organisation and allowing some authority (an ‘entrepreneur’) to direct the resources, certain marketing costs are saved”.

O autor do anteprojeto da Lei das S.A., José Luiz Bulhões Pedreira, vai além:

A prevalência do princípio da estrutura hierarquizada é fundamental para o funcionamento eficiente tanto da companhia quanto da sua empresa, e o interesse geral na eficiência do modelo de companhia como forma de organização da grande empresa requer essa prevalência, pois não há estrutura hierarquizada que funcione com eficiência se o ocupante de um papel subordinado puder descumprir as ordens de quem tem competência para orientar sua ação”.

No direito societário brasileiro, a hierarquia é estabelecida pela extensão dos poderes da assembleia.

O art. 121 determina que “a assembleia-geral, convocada e instalada de acordo com a lei e o estatuto, tem poderes para decidir todos os negócios relativos ao objeto da companhia e tomar as resoluções que julgar convenientes à sua defesa e desenvolvimento.

O art. 122 determina a competência exclusiva da assembleia para deliberar sobre as questões mais importantes da companhia, dentre as quais a reforma do estatuto social, a nomeação de administradores e a deliberação sobre operações (fusão, incorporação, cisão, etc).

O acionista controlador, que prevalece nas assembleias já que titular da maioria do capital votante, usa a extensão dos poderes assembleares para “dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia”, como lemos no art. 116.

Em suma, o princípio hierárquico afirma-se pela (i) caracterização do acionista controlador como quem dirige e orienta a companhia; e (ii) os poderes decisionais da assembleia que conferem efetividade ao poder do controlador.

Mesmo reconhecendo a hierarquia entre os órgãos sociais, a Lei das S.A. estabelece competências privativas e indelegáveis a cada um deles. Em outras palavras: um órgão não pode substituir outro ainda que se encontre hierarquicamente em plano superior, tal como lemos no art. 139 que ”as atribuições e poderes conferidos por lei aos órgãos de administração não podem ser outorgados a outro órgão, criado por lei ou pelo estatuto”.

A regra da indelegabilidade dos poderes tem origem no Direito Público. O modelo tripartite dos poderes políticos está baseado na independência e equilíbrio entre os poderes, refletido no clássico conceito de freios e contrapesos.

Mas numa sociedade anônima, tal como vimos pela estrutura hierárquica, a distribuição de poderes é necessariamente desigual.

Mesmo que os órgãos de administração tenham competências próprias e autônomas, o poder de controle se projeta sobre os administradores e condiciona a gestão de modo permanente:

(i) A demissibilidade ad nutum dos administradores pela assembleia (art. 122, II)

(ii) As amplas competências da Assembleia em impor políticas e comportamentos aos demais órgãos (art. 122, I e VIII)

(iii) Os poderes de fiscalização da ação dos ocupantes dos órgãos subordinados pelo acionista controlador (art. 122, IV)

(iv) A competência residual da Assembleia desde que não invada a esfera das competências privativas dos demais órgãos sociais (art. 121)

(v) A competência revisional sobre as deliberações do Conselho de Administração que pode ser conferida à Assembleia pelo Estatuto Social (art. 121)

(vi) A vinculação dos administradores aos termos dos acordos de acionistas celebrados pelos acionistas que os elegeram (art. 118, §8º e §9º)

Disso, conclui Tavares Guerreiro que “infiltra-se, dessa forma, o poder de controle pela própria tessitura organizacional da administração, influindo de jacto nos rumos da empresa, como uma potestas efetiva”.

Por isso, quando o art. 154 afirma que “o administrador eleito por grupo ou classe de acionistas tem, para com a companhia, os mesmos deveres que os demais, não podendo, ainda que para defesa do interesse dos que o elegeram, faltar a esses deveres”, não se deve exagerar na interpretação do dispositivo.

A Lei das S.A. não está dizendo que o administrador deve abrir mão da orientação do acionista controlador que o elegeu, mas apenas repisando o óbvio: que o administrador não poder agir contrariamente ao interesse social da companhia, independente de qual seja a posição do acionista controlado.

As atribuições dos administradores são autônomas e indelegáveis. Mas, de fato, têm uma autonomia condicionada, e assim estão limitados pelo interesse social e submetidos ao acionista controlador.

Na conclusão de Alfredo Lamy e Bulhões Pedreira, “não cabe afirmar que o administrador da companhia é ‘autônomo’ no exercício de suas funções, no sentido de que ao exercer as suas atribuições está submetido exclusivamente às normas da lei e não tem o dever de observar a orientação recebida dos ocupantes dos cargos a que está subordinado na estrutura hierárquica da companhia.”

É assim que se deve interpretar os efeitos da estrutura hierárquica sobre a divisão de funções nas companhias, e o que cabe propriamente aos seus administradores.

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Rodrigo de Abreu Pinto

Nascido em Recife, é formado em filosofia pela FFLCH-USP e em direito pela PUC-Rio.