Lei nº 14.195 e as alterações na Lei das SA: desterrados em nossa terra
“Trazendo de países distantes nossas formas de vida, nossas instituições e nossa visão do mundo e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos uns desterrados em nossa terra”. Sérgio Buarque de Holanda
A Lei nº 14.195, de 21 de agosto de 2021, originou-se da Medida Provisória nº 1.040, editada pelo Ministério da Economia com o objetivo de melhorar o ambiente de negócios e a posição do Brasil no ranking do Doing Business, no qual o Brasil nunca figurou entre os 100 primeiros da lista e esteve na 124º posição na última edição (2019)
O ranking integra um estudo anual do Banco Mundial que mede, analisa e compara as regulamentações aplicáveis às empresas e o seu cumprimento em 190 países, incluindo diferentes critérios como (i) velocidade na abertura de empresas, (ii) proteção a acionistas minoritários, (iii) simplicidade do sistema tributário, entre outros.
Visando melhorar a posição no Brasil critério de proteção a acionistas minoritários, a Lei nº 14.195 produziu uma série de alterações na Lei das S.A., representando nada menos que a terceira maior modificação na lei criada em 1974, atrás apenas das reformas da Lei nº 9.457/1997 e da Lei nº 10.303/2001 em termos da quantidade de dispositivos alterados.
Tão logo anunciada, a então Medida Provisória nº 1.040 foi alvo de críticas de juristas e acadêmicos que a interpretavam como uma ameaça a sistematicidade da Lei das S.A. sob o pretexto de “pontuar” no relatório do Banco Mundial.
Em lugar de contrapor os critérios do ranking com o ambiente de negócios das companhias brasileiras, o negacionismo societário do governo, tal como definiu Nelson Eizirik, era puxado pelo afã populista do presidente cumprir a promessa que fizera em Davos de melhorar a posição do Brasil no ranking.
Não à toa, o governo atropelou o processo legislativo ao propor a reforma via Medida Provisória, embora lhe faltasse os requisitos de relevância e urgência que legitimariam o instrumento (tal como obriga o art. 62 da Constituição).
O próprio do texto da Exposição de Motivos, escrito pelo Ministério da Economia, denunciava, revelava as suas razões mesquinhas: “para que o Brasil alcance a posição desejada no Relatório Doing Business 2022, é necessário implementar as mudanças regulatórias a tempo para que sejam refletidas pelos respondentes no primeiro semestre de 2021 e constem do relatório 2022”.
Mas nada é tão ruim que não piorar, ao menos na realidade brasileira em tempos recentes. Logo após a aprovação da Lei nº 14.195, o relatório Doing Business foi descontinuado pelo Banco Mundial em setembro após a identificação de irregularidades e suspeitas de fraude em sua apuração.
Entre a MP nº 1.040 e a Lei nº 14.195
A proposta original da Medida Provisória nº 1.040, em relação à reforma da Lei das S.A., contava com quatro mudanças exclusivamente em companhias abertas:
Quatro alterações da MP nº 1.040 baseadas em critérios do Doing Business:
(i) Transação com partes relacionadas como competência privativa da Assembleia;
(ii) Aumento do prazo de convocação da Assembleia para 30 dias;
(iii) Vedação ao acúmulo das funções de presidente do conselho e diretor-presidente; e
(iv) Participação obrigatória de conselheiros independentes no Conselho de Administração.
A mobilização de diversos atores do direito societário forçou explicações, a exemplo da reação do Relator Deputado Marco Bertaiolli em seu relatório antes do texto seguir para o Senado:
“No tocante a alterações promovidas no Capítulo de proteção a acionistas minoritários, é antes necessário fazermos uma observação inicial: temos absoluto respeito pela Lei de Sociedades Anônimas e sabemos que a Lei no 6.404, de 1976, é exemplo de legislação que resistiu bem ao teste do tempo”.
Mais do que meras palavras, a tramitação da Medida Provisória no Congresso transformou o texto.
Por um lado, as baseadas nos critérios do Doing Business foram aprimoradas. Por outro, a MP nº 1.040 recebeu emendas dos parlamentares durante a tramitação que incluíram alterações demandadas pelo mercado na Lei das Sociedades Anônimas, envolvendo tanto companhias abertas quanto fechadas.
Quatro alterações originais da MP nº 1.040, baseadas em critérios do Doing Business e exclusivas em companhias abertas:
(i) Transação com partes relacionadas como competência privativa da Assembleia caso o valor da operação corresponda a mais de 50% do valor dos ativos totais da companhia;
(ii) Aumento do prazo de convocação da Assembleia para 21 dias;
(iii) Vedação ao acúmulo das funções de presidente do conselho e diretor-presidente; e
(iv) Participação obrigatória de conselheiros independentes no Conselho de Administração.
Três alterações adicionadas pelo Congresso, baseadas em demandas do mercado e inseridas companhias abertas e fechadas:
(v) Diretor de companhia não precisa necessariamente residir no Brasil (emenda do Deputado Kim Kataguirri do DEM-SP)
(vi) Substituição dos livros sociais por registros eletrônicos em companhias fechadas (emenda da Deputada Adriana Ventura do Novo-SP)
(vii) Permissão a criação de ações ordinárias com voto plural (emenda do Deputado Marco Bertaiolli do PSD-SP)
A principal alteração foi a limitação da competência privativa da assembleia às transações com partes relacionadas que envolvam valores exorbitantes. Muito embora eu julgue que a medida ainda seja desnecessária, em face do rigoroso sistema de deveres fiduciários imposto aos administradores das companhias pela Lei das S.A., ao menos substitui a proposta original da Medida Provisória que, caso aprovada, transformaria a vida dos grupos de sociedade numa “eterna assembleia” já que qualquer transação com partes relacionadas seria a ela submetida.
A extensão do prazo de convocação das Assembleias dos atuais 15 dias para 21 é razoável e menos rígido que a proposta original de 30 dias, em que as companhias estariam sujeitas a um tempo excessivamente longo entre marcar a assembleia e tomar as decisões.
A vedação ao acúmulo das funções de presidente do conselho e diretor-presidente, bem como a participação obrigatória de conselheiros independentes no Conselho de Administração, permanecem iguais a proposta original, frisando-se que, em ambos os casos, a lei reforça que a CVM deverá regulamentar o dispositivo, com a possibilidade de flexibilizá-lo (em especial para companhias menores).
Por fim, as medidas adicionadas pelo Congresso são positivas e refletem demandas antigas do mercado, em especial a permissão a criação de ações ordinárias com voto plural que recentemente motivou a listagem de empresas brasileiras em bolsas estrangeiras que já adotavam o instrumento.
O futuro da Lei das S.A.
Por mais que aprimorada, é importante não perder de vista que o risco que a Lei das S.A. correu. Não é demais lembrar dos alertas dos autores da lei, Alfredo Lamy e Bulhões Pedreira, para quem “a Lei das S/A é um mecanismo institucional extremamente delicado devido à interação das normas que protegem todos esses interesses — alguns conflitantes entre si -, e na redação de cada norma é preciso avaliar seus efeitos sobre o conjunto e o modo pelo qual pode afetar o equilíbrio do sistema”.
Sem esse cuidado, qualquer reforma na Lei das S.A. é capenga ou coisa pior. O mecanismo do voto plural, por exemplo, ingressou na lei com um conjunto de restrições que o tornam muito menos aplicável que as ações preferenciais, razão pela qual corre o risco de se tornar menos efetivo.
Os cuidados em reformar a Lei das S.A., por sua vez, tampouco devem se traduzir em obstáculos intransponíveis a atualização da lei, desde que feitas sem a pressa de uma Medida Provisória e os interesses mesquinhos do atual Executivo.
A transação com partes relacionadas, por exemplo, uma vez submetida à assembleia, vai se deparar com a indefinição sobre a possibilidade do voto do acionista controlador, já que o dilema entre conflito material e formal do art. 115 permanece sem solução e à espera de uma nova redação.
Há muito a ser feito, embora de outro jeito.