Melhor dívida nova do que pecado velho

Rodrigo de Abreu Pinto
5 min readJul 1, 2020

É justo criticar as falhas de implementação, estratégia e timing das medidas econômicas contra a pandemia. Não é certo, por outro lado, dizer que gastamos pouco. Por mais que o ministro Paulo Guedes tenha dito inicialmente que bastariam R$ 5 bilhões para “aniquilar o Coronavírus”, os gastos aprovados superam R$ 500 bilhões — mais de 100 vezes aquele valor — muito embora parte dos recursos esteja empoçado por problemas na execução.

A economista Laura Carvalho recém-lançou um livro sobre a postura do governo no combate à pandemia cujo título — Curto-circuito: o vírus e a volta do Estado — expressa bem a torção da política de Guedes diante da crise econômica e sanitária. Foi necessário que a primazia do mercado, incapaz de propor soluções à altura, cedesse lugar ao Estado como agente de coletivização dos riscos sociais. Em reportagem especial sobre o Brasil, o jornal britânico Financial Times acertou ao dizer que “o badalado ministro Paulo Guedes foi forçado a reconciliar sua identidade ‘Chicago Boy’ de livre mercado com a necessidade de vultosa intervenção governamental”.

É isto um homem? (2014) de Nuno Ramos.

A reconciliação entre ideais liberais e o papel contra-cíclico dos gastos públicos, no entanto, foi meramente episódica. Ou, melhor dizendo, foi uma reconciliação instrumental, pois o ministro agora apela ao argumento de que a dívida pública cresceu para justificar a diminuição do Estado logo após pandemia.

Foi por isso que nos últimos dias só se falou em privatizações — tanto através de mudanças legais (como o novo marco do saneamento básico que facilita a privatização de empresas como Sabesp e Copasa), quanto pela venda propriamente dita de estatais como Eletrobrás e Correios — sob a justificativa de aplacar o crescimento da dívida. Pois seria esse, afinal, o único modo de garantir a solvência fiscal do Estado, sem a qual os investidores privados não teriam confiança para investir no país.

De minha parte, sem ignorar que a dívida pública é o principal indicador de solvência do Estado, julgo que não seja esse o principal entrave aos investimentos — pelo menos no curto prazo — por três motivos que relativizam a urgência pelo crescimento da dívida:

a) O cenário mundial pós-pandemia será repleto de países com dívidas maiores, o que altera a sensibilidade dos investidores e das agências de rating.

b) Embora a nossa dívida esteja mais alta, a taxa de juros em piso histórico evita uma trajetória explosiva.

c) Mesmo que a dívida elevada seja motivo para a saída de dólares, a desvalorização do real dos últimos meses não veio acompanhada de crise cambial, nem impactou a inflação.

A preocupação com a dívida pública, decerto, é legítima — e não apenas pelo risco de calote, mas porque o pagamento de juros pelo Estado opera uma redistribuição de renda aos mais ricos, já que são esses que geralmente compram títulos do Tesouro. De fato, precisamos controlar a dívida — sendo que no médio/longo prazo — para não atrapalhar ainda mais uma economia já repleta de empresas endividadas e famílias sem renda e emprego. No curto prazo, portanto, não poderemos abrir mão dos investimentos públicos que gerem empregos e a demanda necessária para suscitar a retomada do crescimento a fim de atrair o empresariado nacional. Ao mesmo tempo que ganharemos tempo para realizar o ajuste fiscal não apenas pelo lado das despesas (cortando investimento público), mas também das receitas (através da arrumação progressiva da carga tributária) no médio/longo prazo.

Em artigo recente, os economistas Bráulio Borges, Gilberto Borça Jr. e Manoel Pires demonstraram como a consolidação fiscal prematura foi determinante para a recuperação lenta dos países europeus e do Brasil na saída da última crise — ao contrário, por exemplo, da retomada acelerada Estados Unidos. No caso dos europeus, isso se explica porque países como Itália, Espanha e Grécia não possuem autonomia para manejar os instrumentos da política econômica (monetário, fiscal e cambial) já que dependem do Banco Central Europeu para expandir as dívidas ou emitir moeda. Já o Brasil, ao contrário, embora tenha em mãos os instrumentos para gerenciar os ciclos econômicos, não o faz porque o anti-estatismo radical — amenizado durante a pandemia — é a ideologia dominante do ministério da Economia pelo menos desde 2015.

Comparação da recuperação do Brasil com a dos EUA na última crise (T=100 = pico imediatamente anterior ao início da recessão; série com ajuste sazonal). Fonte: Bloomberg e IBGE

Contra disso, como afirmou o ministro Rogério Marinho na reunião ministerial divulgada, “o que eu peço é que nós tenhamos aqui as mentes abertas e que os dogmas, quaisquer que sejam eles presidente, sejam colocados de lado nesse momento”. Se há algo que os gastos durante a pandemia ensinaram, é que são as regras fiscais — e não a falta de fontes de financiamento — que contraem os investimentos públicos. À título de alimentar o debate, deixo minhas três sugestões de alternativas de curto prazo:

1- Repensar o Teto de Gastos através de estratégias que não eliminem a âncora fiscal, mas liberem os investimentos e gastos sociais. Tomo como exemplo a PEC 131/19 do senador Jacques Wagner (PT-BA) que prevê um “extra-teto” para gastos com efeitos multiplicador e distributivo.

2- Garantir a manutenção do auxílio emergencial — ao menos até o final do ano — por meio de formas não convencionais de financiamento fiscal. A PLP 161/20 do deputado Paulo Teixeira (PT-SP), por exemplo, autoriza a transferência dos ganhos pela desvalorização da moeda sobre as reservas cambiais para o Tesouro, cabendo que esses recursos sejam canalizados a extensão do auxílio.

3- Lançar um pacote de investimento em obras de infraestrutura — voltado especialmente para projetos mais acessíveis como a conclusão de obras paradas e a reparação de equipamentos públicos — pelo qual aproveitaremos o potencial empregatício da construção civil (setor intensivo em mão de obra menos escolarizada). Desde que aprimorado, o plano Mais Brasil, divulgado pelos militares há dois meses, pode ser a semente do projeto.

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Rodrigo de Abreu Pinto

Nascido em Recife, é formado em filosofia pela FFLCH-USP e em direito pela PUC-Rio.