Milicianismo e crescimento econômico: o paradoxo do governo Bolsonaro
A última semana de 2019 foi marcada por duas notícias antagônicas sobre o governo.
De um lado, os dados do comércio natalino surpreenderam. O aumento considerável das vendas em relação ao ano passado (+9,5%) reforçou o otimismo econômico, em plena conformidade com as recentes elevações da projeção do PIB em 2020.
De outro, Jair Bolsonaro concedeu um indulto natalino especialmente aos policiais, militares, bombeiros e “agentes de segurança” em geral que foram condenados por crimes culposos (“sem intenção de matar”). O indulto vale mesmo quando o crime foi cometido fora do exercício da função.
Uma vez juntas, ambas notícias representam o paradoxo que subscreve o futuro do governo Bolsonaro. Enquanto a surpresa no comércio atesta a consistência da retomada cíclica da economia, o indulto ressalta os vínculos do presidente com o milicianismo (em que a impunidade é a carta branca do Estado à atuação das milícias na “pacificação” dos territórios).
Resta a dúvida se a retomada da economia vai fortalecer Bolsonaro e a institucionalização do retrocesso civilizatório. Ou, de modo contrário, se a lógica autocrática do presidente é que vai comprometer as expectativas de crescimento.
O respaldo da economia ao milicianismo
É claro que o impulso da economia ainda não se confirmou, basta lembrar o resultado pífio do leilão do petróleo há pouco. No entanto, considerando que as condições da retomada cíclica estão postas (famílias menos endividadas, melhores condições de crédito, oferta mais barata de mão de obra, inflação e dívida pública controladas), a tendência é que cresçamos 2% em 2020, o que significará o dobro dos três anos anteriores (1%) incluindo 2019.
À medida que a economia avança e Bolsonaro ganha força, cresce também a preocupação pela pressão exercida pelo presidente sobre as instituições. No primeiro ano de governo, a despeito do insucesso econômico, o ex-capitão ultrajou a autonomia dos órgãos subordinadas ao Executivo (Polícia Federal, Receita Federal, Ministério Público, Ibama, Ancine e Itamaraty). O estrago só não foi maior porque o sistema de freios e contrapesos entre os Poderes segurou a caneta presidencial, vide os decretos e MPs barradas pelo Congresso e as declarações de inconstitucionalidade sufragadas pelo STF.
Nos próximos anos, é certo que o ex-capitão terá o privilégio da nomeação de dois ministros ao Supremo e da organização do seu próprio partido. Mas é caso a economia decole que o presidente poderá atrair uma bancada mais orgânica e obter vitórias mais robustas no Congresso. E o objetivo não será outro senão abrir ainda mais espaço para que a montagem de um Estado miliciano — tal como tentou fazer via flexibilização do porte de armas e o pacote anticrime do ministro Sérgio Moro, ambos refreados pelo Congresso.
A depender, portanto, da musculatura presidencial, ninguém será punido por falar em AI-5; Queiroz nunca prestará depoimento; o assassinato de Marielle não será desvendado; Lula permanecerá inelegível; e estabelecimentos seguirão como alvos terroristas sem que o Ministério da Justiça dê a mínima por isso.
Dito de outro modo: se Bolsonaro ainda não conseguiu levar a cabo seu projeto de tirania miliciana, que vai desde a exploração grileira das reservas indígenas até a militarização das escolas, o ufanismo com o sucesso econômico pode se tornar o veículo que faltava.
O milicianismo sufocando a economia
As condições econômicas estão dadas mas, ao lado disso, as relações espúrias de Bolsonaro podem, além de criar tensões desnecessárias (como ocorreu ao longo do ano), inviabilizar uma retomada digna do nome.
Nem adianta dizer que os vitupérios políticos não afetam a economia. O presidente já deu provas suficientes de quem manda no governo é ele, inclusive na área econômica, tanto ao intervir no cheque especial e no preço da gasolina, quanto ao substituir o homem do mercado (Joaquim Levy) pelo amigo de condomínio dos filhos (Gustavo Montezano) na presidência do BNDES.
Por isso, há de saber até que ponto as diatribes e choques institucionais de Bolsonaro — necessários para a “mobilização permanente” que mantém com seus seguidores — vão aguentar sem produzir algum tipo de paralisia decisória ou afastar ainda mais os investimentos estrangeiros. A imprevisibilidade histriônica do presidente, com efeito, é em tudo prejudicial a estabilidade político-institucional de que depende o crescimento econômico.
Se é verdade que o ex-capitão sabe bricar e moderar o tom beligerante quando a coisa parece virar contra seu lado, ele demonstra impaciência sempre que lhe perguntam por Queiroz, Marielle Franco e Adriano Nóbrega (suspeito de chefiar o “escritório do crime”) — três casos que podem trazer à tona os vínculos entre sua família e as milícias.
Como viu bem Sérgio Fausto, “Bolsonaro vem de um meio político em que as fronteiras entre a legalidade e a ilegalidade não estão claramente demarcadas e isso o torna vulnerável a curtos-circuitos, a chuvas e tempestades”. Sobretudo se o ritmo das investigações se antecipar ao crescimento econômico, quando a penúria social, somada a desconfiança da população, pode se tornar caldo suficiente para um processo de impeachment, o que adiaria de vez a recuperação da economia.
Entre essas duas hipóteses, muita coisa pode acontecer. Há variáveis decisivas como, no primeiro caso, se o crescimento econômico vai se refletir em aumento do emprego formal e dos gastos sociais. Enquanto na hipótese de Bolsonaro se fragilizar no poder,, não se sabe qual será a postura dos militares quando o nó apertar.
Em ambos os casos, isso é certo, a necessidade de agir é premente. Seja para evitar que a retomada da economia respalde os avanços autoritários do presidente. Seja para garantir que os choques institucionais não atrasem ainda mais a retomada da economia. Que estejamos atentos em 2020.