Muito além do controle do preços: Petrobras e interesse público

Rodrigo de Abreu Pinto
8 min readMar 24, 2022

A guerra na Ucrânia esquentou a discussão sobre fontes e recursos energéticos, atualizando os interesses nacionais e empresariais com consequências geopolíticas, tecnológicas e financeiras associadas ao petróleo.

No Brasil, o conflito se traduziu em aumento do preço dos combustíveis, já então pressionados pela inflação de commodities e a desvalorização do real ao longo da pandemia.

Após semanas em que o front ucraniano ocupou os noticiários quase integralmente, as discussões sobre a política de preços da Petrobrás roubaram a cena desde que a companhia anunciou o reajuste do preço da gasolina, diesel e gás de cozinha no último dia 10.

Metaesquema (1958) de Helio Oiticica

A Petrobrás é uma sociedade de economia mista, e portanto constituída pela participação do poder público e de capitais privados para a exploração de atividade econômica.

A sociedade de economia mista é tratada na Constituição, que lhe submete ao regime jurídicos das empresas privadas (art. 173, §1º). Na mesma linha do art. 235 da Lei das Sociedades Anônimas segundo o qual “as sociedades anônimas de economia mista estão sujeitas a esta Lei, sem prejuízo das disposições especiais de lei federal”.

Assim ocorre porque, como explica o ministro Luís Roberto Barroso, “se estabeleceu que a melhor forma de atender ao interesse público, em certo contexto, era dar a tais sociedades a mobilidade e a liberdade de atuação de uma empresa privada”. A sociedade de economia mista, tal como concebido pelo legislador, é eficiente em aumentar a capacidade operacional das estatais pelo ingresso de capital privado e a adoção dos padrões de governança da Lei das S.A.

A diferença essencial entre a sociedade de economia mista e as demais empresas privadas está delimitada pelo art. 238 da Lei das S.A.:

“A pessoa jurídica que controla a companhia de economia mista tem os deveres e responsabilidades do acionista controlador (artigos 116 e 117), mas poderá orientar as atividades da companhia de modo a atender ao interesse público que justificou a sua criação”.

Daí se percebe que o legislador impôs ao Estado, na condição de acionista controlador, uma lógica de deveres diferente daquela que sujeita o controlador privado.

O regime jurídico da sociedade de economia mista é conferido pela leitura conjunta dos artigos 235 e 238 da Lei das S.A. que tratamos acima, conforme a interpretação do ex-Diretor da CVM, Marcos Pinto, em julgamento (PAS CVM 2007/10879, julgado em 24.10.2008):

“De um lado, o acionista minoritário deve investir na companhia ciente de que a União dará́ prioridade ao interesse publico, ainda que isso prejudique seu retorno financeiro (art. 238). Por outro lado, a União se compromete a observar todas as demais regras da Lei nº 6.404/76, inclusive as que limitam o seu próprio poder (art. 235)”.

Portanto, quando o acionista privado aceita participar de uma sociedade de economia mista, está ciente de que o Estado poderá orientá-la legitimamente ao atendimento de interesses públicos sem incorrer, ao menos não necessariamente, em abuso de poder de controle contra os acionistas minoritários.

Por outro lado, a atuação do Estado deve se pautar em limites inscritos na Lei das S.A., tendo como baliza o art. 116 que impõe o dever de o acionista controlador “usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social”.

À vista disso, a finalidade lucrativa não é inerente apenas porque assim estabelece o art. 2º da Lei das S.A., mas porque é essencial para que a sociedade realize o seu objeto de modo sustentável — seja porque os lucros se convertem em investimentos na própria companhia, seja porque atraem a participação de investidores privados pela distribuição de dividendos.

Como compatibilizar a oposição entre finalidade lucrativa e interesse público sem abolir nenhum deles?

Metaesquema (1958) de Helio Oiticica

Quando julgou o Caso Sabesp-EMAE (PAS CVM 2012/1131, julgado em 26.05.2015), uma das lições do voto-vencedor da ex-Diretora da CVM, Luciana Dias, é que a leitura conjunta dos arts. 116 e 238 da Lei das S.A. permite ao controlador de sociedade de economia mista que tome decisões em que o lucro não é maximizado, mas não em que o lucro seja meramente desprezado.

No caso Eletrobrás (PAS CVM 2013/6635, julgado em 26.05.2015), o voto da mesma Luciana Dias reforça que o limite da maximização dos lucros não é qualquer interesse público, mas o interesse público que justificou a criação da sociedade de economia mista, conforme o dispositivo do art. 238.

O problema é que as leis de criação das estatais em geral são mal escritas, a exemplo da Lei 2.004/1953 que criou a Petrobrás sem especificar o “interesse público” que a justificava. Assim como a Lei do Petróleo (9.478/97) que revogou aquela e tampouco delimitou o interesse público da estatal.

Por isso, não é simples recorrer ao interesse público que justificou a criação da Petrobrás para solucionar a discussão sobre a legitimidade, ou não, do controle de preços.

A recente Lei das Estatais (13.303/2016) ajuda a solucionar a questão pois determinou as balizas do conceito de “interesse público”, sem embargo do interesse público específico de cada sociedade de economia mista.

Conforme o art. 27 da Lei das Estatais, “interesse público” necessariamente engloba (i) o alcance do bem-estar econômico; (ii) a alocação socialmente eficiente dos recursos; (iii) a ampliação economicamente sustentada do acesso de consumidores aos produtos e (iv) o desenvolvimento de tecnologia brasileira.

Trazendo ao caso presente, uma política de controle de preços impactaria diretamente os importadores que adquirem insumos e combustíveis no exterior, a preços de mercado, e vendem no mercado brasileiro. Em razão dos preços artificiais da Petrobrás, esses importadores não conseguiriam competir internamente com a estatal brasileira.

Assim, como os combustíveis podem ser vendidos no Brasil ou em qualquer lugar do mundo, tais empresas passariam a exportá-los para onde o preço é maior, gerando desabastecimento no mercado brasileiro. Como explicou a Petrobrás em nota após o aumento, o movimento dos preços a mercado é “necessário para que o mercado brasileiro continuasse sendo suprido, sem riscos de desabastecimento, pelos diferentes atores responsáveis pelo atendimento às diversas regiões brasileiras: distribuidores, importadores e outros produtores, além da Petrobras”.

À vista disso, caso a Petrobrás adotasse o controle de preços em nome do “interesse público”, independente de qual seja, atentaria contra (i) o alcance do bem-estar econômico; (ii) a alocação socialmente eficiente dos recursos; e (iii) a ampliação economicamente sustentada do acesso de consumidores aos produtos. Logo, invocar o atendimento do “interesse público”, como justificativa ao controle dos preços, não é legítimo.

Afirmar (como estou fazendo) que o Estado, enquanto acionista controlador da Petrobrás, não deve controlar o preço sob o pressuposto do “interesse público”, não significa que inexistam soluções alternativas para a suavização dos preços dos combustíveis no mercado interno. Mas tais alternativas podem ser melhor perseguidas pelo Estado-regulador (e não pelo Estado-acionista controlador da Petrobrás), a exemplo de um imposto sobre a exportação de petróleo para financiar um fundo de estabilização ou um subsídio temporário aos consumidores mais vulneráveis, de maneira a auxiliar o planejamento dos balanços financeiros de famílias e empresas.

Metaesquema (1958) de Helio Oiticica

De todo modo, certo é que a pressão pelo controle de preços da Petrobrás é uma questão passageira, prestes a arrefecer à medida que os choques aliviem. Mais certo e douradouro é a premência de uma questão mais profunda que está atrelada a indefinição do interesse público da Petrobrás.

Em reforma do estatuto aprovada na Assembleia de 15/12/2017, a própria Petrobras tomou iniciativa de dizer qual é o seu interesse público, baseando-se em um dos incisos do art. 1º da Lei do Petróleo que estabelece os princípios e objetivos da Política Energética Nacional.

Estatuto Social: “Art. 2 (…) §3º — A Petrobras poderá ter suas atividades, desde que consentâneas com seu objeto social, orientadas pela União de modo a contribuir para o interesse público que justificou a sua criação, visando ao atendimento do objetivo da política energética nacional previsto no art. 1º, inciso V, da Lei no 9.478, de 6 de agosto de 1997”.

Lei do Petróleo: “Art. 1º As políticas nacionais para o aproveitamento racional das fontes de energia visarão aos seguintes objetivos: (…) V — garantir o fornecimento de derivados de petróleo em todo o território nacional”.

Assim, excluiu-se os outros 17 incisos do art. 1º da Lei do Petróleo que envolvem, por exemplo, “proteger os interesses do consumidor quanto a preço, qualidade e oferta dos produtos” (inciso III), “ampliar a competitividade do País no mercado internacional” (inciso XI), “garantir o fornecimento de biocombustíveis em todo o território nacional” (inciso XIII), “fomentar a pesquisa e o desenvolvimento relacionados à energia renovável” (inciso XVII).

A reforma do Estatuto Social ainda estipulou que “a União compensará, a cada exercício social, a Companhia pela diferença entre as condições de mercado (…) e o resultado operacional ou retorno econômico da obrigação assumida” sempre que o Estado orientar a Petrobrás a contribuir para o interesse público, conforme expresso no §6º do art. 2º.

É notório que o dispositivo não somente inviabiliza instrumentos tradicionais da Petrobrás (como as políticas de conteúdo nacional), como ignora o próprio regime jurídico das sociedades de economia mista em que a geração de ganhos aos acionistas se subordina, embora não incondicionalmente, a realização da missão pública.

Em suma, a reforma do Estatuto da Petrobrás neutralizou o seu caráter de empresa pública ao impor-lhe condições que restringem as possibilidades, abertas pelo art. 238 da Lei das S.A., para que a sociedade de economia mista atenda legitimamente o interesse público ao assumir os riscos intrínsecos a atividades inovadoras, como prospecções e descobertas como o pré-sal, além do desbravamento de energias renováveis e novas fronteiras tecnológicas.

O processo de “privatização branca” da Petrobrás se completa pela política de distribuição de dividendos: em 2021, Petrobrás distribuiu R$ 101 bilhões de dividendos (95% de todo o lucro de 2021) em detrimento da ampliação dos investidores, retendo apenas cerca R$ 7 bilhões do lucro total.

Frisa-se que os lucros são resultantes não apenas do aumento do preço do petróleo, mas sobretudo da capacidade de inovação da Petrobrás, tal como reconhecida internacionalmente desde a exploração na Bacia de Campos (1977), a sua primeira descoberta com grande potencial de produção, até a exploração em águas ultraprofundas do pré-sal (2007).

É isso está sendo deixado lado pela Petrobrás, então presa numa lógica curto-prazista que desaconselha a ampliação dos investimentos a despeito do enorme montante de lucros. Assim, ganham os acionistas (governo federal, acionistas privados brasileiros e acionistas e fundos estrangeiros) e perdem os consumidores enquanto se revela “a disposição de privilegiar interesses do mercado, a exemplo da primazia da geração e da distribuição dos lucros, em detrimento dos fins públicos e das políticas de Estado que a Petrobras — na condição de sociedade de economia mista, um ente da Administração Pública Indireta — deveria preferir”, nas palavras de Wafrido Warde.

Não se nega que a empresa foi vandalizada por administradores e políticos, mas o combate a corrupção deve inspirar um desenho institucional condizente com melhores práticas, e não destruição do arcabouço institucional (Petrobrás, BNDES, Embraer, etc) que impulsionou o desenvolvimento do país ao longo de sua história recente.

Após duas crises globais, separadas por apenas uma década, e a ameaça climática onipresente, o papel do Estado na coletivização de riscos sociais e na produção doméstica de diversos itens, como o petróleo, está sendo reinterpretado. Está na hora de preparar as nossas sociedades de economia mista para o futuro.

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Rodrigo de Abreu Pinto

Nascido em Recife, é formado em filosofia pela FFLCH-USP e em direito pela PUC-Rio.