Nacional sem ser nacionalista: a dupla capitulação dos militares
À primeira vista, a associação dos militares e o governo Bolsonaro parece trivial. Basta olhar, por exemplo, os ministérios chefiados por generais e o passado militar do presidente.
Mesmo assim, sem negar totalmente o vínculo, persistiam pontos cegos que tolhiam uma relação absoluta.
Em primeiro lugar, Bolsonaro nunca foi um militar exemplar aos olhos da cúpular militar, ao contrário do frenesi que sempre causou nas baixas patentes. Perguntado sobre o envolvimento dos militares na política, Ernesto Geisel respondeu: “Não contemos o Bolsonaro, porque o Bolsonaro é completamente fora do normal, inclusive um mau militar”.
Em segundo lugar, o liberalismo dogmático de Paulo Guedes não constava na cartilha econômica castrense. Ao menos desde a revolução de 30, os militares patrocinaram a industrialização, sem a qual o Brasil não lograria os avanços produtivos e tecnológicos indispensáveis a consolidação das Forças Armadas.
Agora, em menos de um ano de governo, os militares já ensaiam respostas definitivas a ambas questões.
1) A capitulação americanista
O arrego do paradigma industrializante se deu logo de cara. Desde que embarcaram no governo, os fardados repetem profissões de fé ao projeto econômico que tem, como pano de fundo, a reafirmação do caráter agrário-exportador da economia brasileira. Isso, porque envolve a redução dos investimentos públicos e dos aportes do BNDES, assim como a abertura comercial e financeira sem planejamento estratégico, medidas executadas pela equipe econômica e elogiadas pelos generais do governo.
Até então, na visão da caserna, o desenvolvimento industrial era articulado aos objetivos de defesa do território nacional. Agora, a aposta no agronegócio e no extrativismo mineral corresponde, em contrapartida, ao aumento da importação de bens industriais, inclusive militares.
Por isso, ao abrir mão do ideal desenvolvimentista, a associação militar aos Estados Unidos desponta como a única chance do país angariar equipamentos militares. Muito embora, é claro, não passem de armamentos e softwares de segunda mão que os Estados Unidos, vejam só, doam periodicamente às “nações amigas” sempre que renovam a frota (há poucos meses, o Brasil recebeu 96 blindados usados, por exemplo). A esperança dos militares, portanto, é que sejamos, pelo menos, um dos primeiros na lista de boas graças.
Os americanos, que obviamente não são bobos, querem que o Brasil mereça furar a fila. O governo se antecipou e, mesmo antes de assumir, deu aval para Temer concluir a venda da Embraer para Boeing. Em seguida, o general brasileiro Alcides Faria Jr. foi cedido ao exército americano. E a cereja do bolo foi a concessão da base de lançamento de foguetes de Alcântara (MA). Anteriormente vetado por Lula, o acordo não envolve nenhuma contrapartida científica ou tecnológica, o que somente confirma o complexo de vira-lata que, desta vez, atinge até os militares: nacional sem ser nacionalista, americanista sem ser americano. E olhe que já começaram a falar em privatização da Petrobrás.
2) A capitulação bolsonarista
A segunda rendição foi dos militares ao próprio governo. Meses atrás, os militares pareciam compôr a ‘ala racional’ do governo Bolsonaro, muito porque assim atuaram ao desaconselhar a embaixada em Jerusalém e a invasão à Venezuela. Agora, os generais passaram a não apenas ratificar, mas a radicalizar as falas do presidente, como ficou claro na querela sobre a Amazônia.
Os militares estavam em silêncio há algum tempo, mais exatamente desde os ataques de Olavo de Carvalho e o caso dos 39kg de cocaína no avião da FAB, ambas situações que expuseram a corporação. Nesse meio tempo, o presidente aproveitou para afastar dois generais que não tinham a simpatia da sua base: Santos Cruz (Secretaria de Governo) foi demitido e Rêgo Barros (porta-voz da Presidência) perdeu protagonismo.
Quando explodiu a polêmica sobre a Amazônia, os generais entraram em cena novamente, sendo que para defender o presidente, fazendo questão do tom beligerante que, decerto, agrada ao chefe.
O general Heleno ironizou Emmanuel Macron ao dizer: “Filósofos de barzinho, e até Chefes de Estado, que jamais estiveram na Amazônia, propagam suas teses insustentáveis”.
Até o general Villas Bôas, normalmente discreto, resolveu tirar casquinha dos franceses: “A questão que se coloca é de onde viria autoridade moral daquele país que, como disse Ho Chi Minh, é a patria do Iluminismo, mas quando viaja se esquece de levá-lo consigo.” Ao final, jogou para a platéia: “É hora do Brasil e dos brasileiros se posicionarem firmemente diante dessas ameaças, pois é o nosso futuro, como nação, que está em jogo.”
O que chamou atenção, no entanto, foi a posição serena do general Edson Leal Pujol, comandante do Exército. Diferente dos demais, Pujol é da ativa, ou seja, está inserido no dia-dia dos quartéis e não do Planalto. Ele fez questão de apagar o incêndio, ou ao menos tirar o Exército da reta, afirmando: “Para que um país entre em um conflito armado tem de haver uma razão muito forte e tem de ter aceitação da sociedade, do Congresso. A sociedade tem de ver alguma razão para chegarmos a esse extremo de um conflito armado. Não basta um mandatário de uma nação querer.”
O certo é que os generais do governo, assim como Sérgio Moro, estão sob as asas do presidente. Só faltou, no entanto, combinar com os militares da ativa. Afinal, se o comandante do Exército driblou o discurso oficial, lá embaixo a coisa está ainda mais acirrada.
Para quem não sabe, os praças estão em pé de guerra contra a reforma da Previdência dos militares e a reestruturação das carreiras. Segundo eles, ambas privilegiam as altas patentes e asfixiam as menores. As Forças Armadas circularam informes internos para frisar as normas constitucionais que proíbem manifestação coletiva “tanto sobre atos de superiores, quanto as de caráter reivindicatório ou político”.
O paradoxo então é esse: quanto mais os generais se aproximam de Bolsonaro e Paulo Guedes, mais se afastam das bases. Os militares de baixa patente foram os primeiros a apoiarem Bolsonaro, e também a quebrarem a cara.