Nada é impossível, mas falta tempo para tornar possível

Rodrigo de Abreu Pinto
3 min readJun 20, 2024

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A Apple apresentou a atualização do sistema operacional dos Iphones, Ipads e Macbooks em sua conferência anual de desenvolvedores na Califórnia.

O foco recaiu sobre a assistente de voz Siri, agora turbinada pela inteligência artificial generativa, a mesma tecnologia que alimenta chatbots poderosos como o ChatGPT e o Gemini.

Quem tem aparelho Apple e já testou a Siri dificilmente fica impressionado. Qualquer pergunta minimamente mais difícil já deixa a Siri em apuros. E a assistente de voz informa educadamente que não pode ajudar.

Se isso está prestes a mudar, é porque Tim Cook e cia apresentaram uma assistente de voz treinada com base em enormes conjuntos de dados — e, por isso, muito mais “inteligente”. A Siri será capaz de auxiliar os usuários em diversas atividades como escrita, análise de documentos e pesquisa em torno de temas difíceis, a exemplo do que fazem os assistentes de voz da Microsoft (Copilot) e da Google (Gemini for Android).

Os assistentes de voz representam o auge dos dispositivos de otimização da produtividade — afinal, ninguém melhor do que uma Siri para auxiliar em inúmeras tarefas e poupar tempo para outras preocupações.

Italo Calvino diz que “a economia do tempo é uma coisa boa, porque quanto mais tempo economizamos, mais tempo poderemos perder”. Mas a existência de mil objetos e técnicas destinadas a poupar tempo resultou numa era caracterizada pelo inverso: quanto mais tempo economizamos, mais tempo queremos economizar.

A preocupação generalizada é por fazer mais coisas em menos tempo, desde “maratonar” séries até escutar podcast enquanto lava os pratos. Até mesmo o uso de drogas, antes destinado a modificar a consciência em busca de novas percepções de mundo, converteram-se em ferramenta de maximização do desempenho profissional.

É por isso que os assistentes de voz já não se identificam com a visão idílica de pessoas ricas com secretárias pessoais e uma vida menos estressante. Siri ou Copilot se alinham aos instrumentos que tentam eliminar as limitações físicas intrínsecas dos seres humanos, a exemplo da busca científica para reduzir as exigências de sono (como Jonathan Crary discute no ótimo 24/7) ou a aquisição de membros artificiais para multiplicar a performance em trabalhos manuais.

Com tantos meios disponíveis para que os limites humanos sejam ignorados, resta ao indivíduo a sensação de que o sucesso depende apenas dele, assim como o fracasso é de sua inteira responsabilidade. Já que nada é impossível, as derrotas rapidamente se convertem no sentimento de que o próprio eu que não é possível.

A manifestação patológica dessa liberdade paradoxal é a depressão — como diz Maria Rita Kehl, “é razoável supor uma relação entre o aumento dos casos de depressão e a urgência que a vida social imprime à experiência subjetiva do tempo”. A interpretação da psicanalista é que “[o] tempo morto do depressivo funciona como refúgio contra a urgência das demandas de gozo do Outro”.

Só que o depressivo se refugia unicamente para se resguardar. O seu tempo morto é diferente do tempo ocioso de que falava Domenico De Masi, autor italiano que nos deixou há poucos meses. Em seu clássico Ócio Criativo, Masi dizia que os tempos de ócios são indispensáveis, não porque a mente descansa e fica sem fazer nada, mas porque é a ocasião em que processa informações, nutre a imaginação, contempla novas possibilidades, tem insights profundos.

A Siri acabou de se tornar inteligente enquanto os humanos, para que continuem sendo, precisam aprender a utilizá-la.

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Rodrigo de Abreu Pinto
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Written by Rodrigo de Abreu Pinto

Advogado (PUC-Rio) e Filósofo (FFLCH-USP). Diretor de Inovação da Câmara de Comércio Brasil-Portugal.

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