Nixon kicked out of China: entre o colapso climático e o keynesianismo bélico

Rodrigo de Abreu Pinto
6 min readApr 7, 2022

A luta pela existência é um valor em si. Mas a luta dos ucranianos é ainda mais comovente por tudo que a envolve. Yuval Harari publicou artigo na Folha de São Paulo em que descreve a resistência dos ucranianos:

Cada tanque russo destruído e cada soldado russo morto fortalecem a coragem dos ucranianos para resistir. E cada ucraniano morto intensifica o ódio que os ucranianos sentem dos invasores. O ódio é a mais cruel das emoções. Mas para nações oprimidas, é um tesouro oculto. Enterrado no fundo do coração, é capaz de conservar a resistência viva por gerações”.

Devemos apoiar a Ucrânia com toda a força desde que esteja à altura de não cultivar apenas a força. O ódio dos ucranianos é estratégico, como descreve Harari, mas quem exerce ódio até o fim se converte em coisa no sentido mais literal.

É preciso assumir uma posição difícil que, não sendo neutra, interroga o próprio sentido da guerra nesta altura da história.

Todas as guerras são repugnantes. Mas quando envolve armas atômicas e um colapso climático iminente, é tão repugnante quanto porém muito mais próxima de um fim de história bem diferente ao imaginado por Francis Fukuyama.

Os Estados, definidos pelas suas fronteiras e interesses nacionais, retornaram ao centro do sistema mundial. O conflito aberto revela isso da maneira mais dramática, mas o momento decisivo aconteceu antes da guerra: a aliança entre China e Rússia.

Foto da histórica visita de Richard Nixon a Mao Tsé-Tung em pequin (1972)

A famosa foto entre Mao Tsé-Tung e Richard Nixon em Pequim, tirada em 1972, atesta a inteligência política de Henry Kissinger, para quem um dos objetivos primordiais da política externa norte-americana era manter China e Rússia separados. Em Sobre a China (2011), Kissinger conta que a aproximação com a China tinha o objetivo de interromper a “ameaça do projeto de hegemonia soviética”.

O que a foto não conta é que Mao já estava bastante debilitado, e inclusive recebeu de presente um respiro portátil mandado por Kissinger. Deng Xiaoping então ascendia lenta e gradualmente no Partido Comunista Chinês, pelo qual lideraria a arrancada da economia chinesa para se tornar a segunda maior economia de mercado do mundo, enquanto a Rússia manteria o status segunda maior potência atômica do mundo até hoje.

Em 07 de fevereiro, Vladimir Putin e Xi Jinping assinaram um documento histórico com uma proposta de refundação da ordem mundial nascida na madrugada de nove para dez de novembro de 1989, quando caiu o muro que dividia Berlim e emergiu os Estados Unidos como potência global monolítica.

No mesmo dia, segundo informações do New York Times, o presidente russo consentiu ao pedido do líder chinês para retardar a invasão a Ucrânia até o final da Olimpíadas de Inverno realizada em Pequim. Tamanha frieza que só encontra paralelo recente na ordem de George W. Bush para a invasão ao Iraque em 2003 contra a posição explícita do Conselho de Segurança da ONU.

George W. Bush discursa para militares norte-americanos (2003)

Trago essa lembrança para mostrar que o sistema mundial (ONU, Unesco e afins) não funciona há muito tempo. A debilidade da OMS diante da pandemia foi a prova dos nove de que a globalização alimentou uma integração econômica e financeira, enquanto as demais áreas foram negligenciadas.

A novidade é que até mesmo o ideal da globalização econômica, cujo ápice foi o ingresso da China na OMC em 2001, está sendo suplantado pelas sanções econômicas que desligaram a Rússia do sistema internacional e reposicionaram as finanças em papel coadjuvante em relação à competição geopolítica.

Mas o paradoxo intolerável é que a desintegração global ocorra ao mesmo tempo em que nossos problemas estão se tornando verdadeiramente “globais”, ameaçando o mundo inteiro de uma vez só.

O sociólogo alemão Ulrich Beck descreveu o desastre nuclear de Chernobyl, ocorrido em 1986, como o fim da era em que a violência se dava entre os humanos, sobretudo infligida contra a categoria dos “outros”: judeus, negros, indígenas, etc. A partir de então, como na profecia ianomâmi que dá nome ao livro de Bruce Albert e Davi Konepawa, é o próprio céu que parece desabar sobre nós com uma violência cada vez mais global e impessoal.

Essa série que começou em Chernobyl e passou pela Aids, as crises financeiras e a pandemia, agora está se aproximado do colapso climático no mesmo momento em que a violência interestatal e entre os homens retoma a sua sequência.

O encontro entre ambas as séries se explica porque essa violência é uma reação contra aqueles problemas. A ameaça climática às condições materiais de existência induz a exacerbação das tensões sociais existentes.

A lógica disso, como sintetizou o filósofo Slavoj Žižek, é a de que “se a questão é a sobrevivência num planeta com problemas, é preciso assegurar uma posição mais forte do que a de outros”. A consequência, por sua vez, é uma corrida armamentista cada vez mais virulenta

O problema é que a economia de guerra permanente é ineficiente contra o colapso climática eminente — seja pelos elevados custos fiscais que minam os investimentos verdes, seja porque a racionalidade embutida é incompatível com a ação cooperativa entre os países.

Na segunda metade do século XX, a economia permanente de guerra foi uma das causas da ruína do principal objetivo daquele período: a construção do Estado de Bem Estar Social.

Nos Estados Unidos, a economia do armamento e o financiamento do imenso programa Guerra nas Estrelas esterilizou os recursos fiscais com a emissão de dívida pública para custear o keynesianismo bélico-militar. Como descreveu Maria Conceição Tavares em A Retomada da Hegemonia Norte-Americana (1985), a dívida federal norte-americana elevou-se de US$ 322 bilhões em 1970 para US$ 906 bilhões em 1980, e para US$ 4,061 trilhões em 1992.

A capacidade fiscal do Estado se envergou pelo peso crescente dos serviços da dívida, que passou a justificar a redução dos gastos em bem-estar social em nome da desaceleração da dívida e da prioridade ao setor de armamentos. As políticas sociais então foram substituídas por armas, liquidando o ensaio de Welfare State iniciado desde o projeto rooseveltiano.

Na Rússia, o militarismo se originou pelo prestígio militar da vitória contra a Alemanha na 2ª Guerra Mundial, e ganhou corpo pela rivalidade com os Estados Unidos. O planejamento altamente centralizado do Gosplan priorizou sobremaneira os gastos militares em detrimento do restante da economia industrial, pondo em xeque a flexibilidade do sistema socioeconômico.

O estoque crescente de armamentos, traduzida na conquista da paridade nuclear com os Estados Unidos, passou a conviver em contraste flagrante com a queda de rendimento das indústrias e das famílias, impactando as pretensões socialistas de redistribuição de renda. Como resumiu Perry Anderson, “para a União Soviética, a Guerra Fria não só foi um impasse diplomático, como também embargou os recursos indispensáveis ao crescimento do país”.

Demolição do Conjunto Habitacional Pruitt-Igoe em St. Louis, Missouri, símbolo da arquitetura moderna (1973)

Há um conhecido episódio em que o presidente John Kennedy, durante a crise dos mísseis de Cuba em 1962, distribuiu para os comandantes das Forças Armadas o livro Os Canhões de Agosto, publicado naquele ano pela historiadora Barbara Tuchman. A obra explica a eclosão da Primeira Guerra Mundial como obra de fatores à primeira vista autônomos, mas que unidos desembocaram no conflito.

As lições dadas aos militares americanos são duas: (i) é preciso aprender com o passado; e (ii) não se deve ignorar as consequências de decisões aparentemente inofensivas.

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Rodrigo de Abreu Pinto

Nascido em Recife, é formado em filosofia pela FFLCH-USP e em direito pela PUC-Rio.