Não há Bolsonaro sem ismo
Em entrevista para a Folha ontem (17/04), Paulo Guedes revelou um curioso diálogo com Bolsonaro quando se conheceram.
Bolsonaro: “Eu sou [um deputado federal] eleito por um grupo específico de pessoas, que me pede para protegê-lo. Eu não posso chegar lá e agir contra ele. Você precisa entender a natureza do meu mandato, eu represento um grupo de indivíduos que votou em mim.”
Paulo Guedes: “O senhor não diz que é o Brasil acima de tudo?”
Bolsonaro: “Se eu receber um mandato de natureza diferente, se eu vier a ser presidente da República e não mais representante de uma classe de cidadãos, confie em mim.”
Para avaliar a exatidão da resposta final, logo perguntaríamos: uma vez tornado presidente do Brasil, Bolsonaro teria abandonado a representação setorial?
Se quisermos, no entanto, avaliar a própria viabilidade do questionamento, é preciso questionar ainda mais: sabendo o tipo de mobilização que o levou ao poder e ali o sustenta, seria possível representar a classe inteira de cidadãos sem negar aquela base inicial?
As medidas mais recentes de Bolsonaro ratificam que o Brasil não está tão acima de tudo assim. Os dias que antecederam a Páscoa foram marcados por atitudes extremamente positivas aos grupos mais próximos ao presidentes. Para os militares e policiais, em complemento a reformulação das carreiras que aliviou o peso da reforma da Previdência, a recém-anunciada LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) garantiu os militares como a única categoria do serviço público que o salário e benefícios poderão ser alterados em 2020. A LDO também limitou os concursos públicos em 2020, ao mesmo tempo que o presidente convocou mais de mil policiais aprovados no ano passado, enquanto outros concursos permanecessem com a convocatória suspensa. Já aos caminhoneiros, a semana começou com o congelamento do diesel e terminou com o BNDES lançando uma linha de crédito específica para o setor, voltada a compra de novos caminhões e manutenção de antigos. Não muito diferente do que fez Dilma e gerou um excesso de oferta de cargas, uma das principais causas da greve de 2018.
Não é de hoje que militares, policiais e caminhoneiros integram o núcleo bolsonarista. Aqueles primeiros o elegeram deputado por quase trinta anos. Os caminhoneiros são mais recentes mas vocalizaram um apoio fundamental a Bolsonaro, quem melhor capitalizou a greve da categoria em 2018. As medidas anunciadas são corporativistas e estão na esteira do mesmo aceno que ex-militar realiza, sem cessar, aos demais grupos que o respaldam. As recentes nomeações de Abraham Weintraub (Educação) e Fabio Wajngarten (Comunicação) ratificam o vínculo com os olavistas. Edir Macedo, chefe da Igreja Universal, ganhou passaporte diplomático. Nem Moro nem Guedes estão acima das necessidades de comprazer as bases. “Sergio Moro finge não saber o que é milícia porque perdeu sua independência e hoje trabalha para a família Bolsonaro”, escreveu José Padilha, arrependido pela série do Netflix que fez em homenagem ao juiz. Por outro lado, o ministro da Economia foi obrigado a engolir a seco não somente o diesel, mas as restrições ao leite importado e as isenções previdenciárias dos produtores rurais, restando decisão a ser tomada sobre a dívida de R$ 17 bilhões com o Funrural.
É bem verdade que todos os presidentes praticavam afagos semelhantes às bases. A diferença é que isso ocorria simultâneo aos pactos que o Executivo estabelecia no Congresso. Agora, o grosso da base governista não está no Congresso pois não integra formalmente a classe política. Além do PSL, somente os partidos aderentes a Lava Jato o apoiam — para notar certa coesão nesse grupo, basta notar como todos os senadores que votaram contra o orçamento impositivo também assinaram a CPI da Lava Toga. Não obstante, desde o impeachment de Collor, firmou-se a lógica cunhada por Marcos Nobres de “pemedebismo”, em que não seria possível governar sem uma supermaioria parlamentar. O afastamento de Dilma atualizou a regra e seu sucessor seguiu à risca, não à toa que Temer se livrou de dois pedidos de impeachment e aprovou uma parte das reformas. Todavia, se as enormes coalizões garantem certa viabilidade, também funciona como um sistema de vetos, já que cada sócio tem direito de vetar iniciativas que perturbem seus interesses. O PT, que vestiu a camisa do “presidencialismo de coalizão” após o mensalão, jamais levou ao plenário bandeiras históricas do partido como a tributação progressiva, e não devemos buscar a razão em outro lugar.
À cada crise do governo Bolsonaro tentam vender o mesmo peixe, reiterando-lhe a supermaioria como força motriz da governabilidade, de modo que não haveria alternativas senão assentir ao modelo antigo (que é profundamente antidemocrático e impede maiores avanços sociais e democráticos, mas que também é capaz de evitar grandes regressões). A questão é que a estrutura bolsonarista, embora não seja tão ampla como as coalizões, já representa um extenso sistema de vetos. Quem não lembra dos nomes barrados aos ministérios da Educação (Maria Inês Fini e Mozart Neves), da Justiça (Ilona Szab), dos Direitos Humanos (Magno Malta)? Diferente da composição petista em que os integrantes se acomodavam melhor uns aos outros, Esther Solano assinala que a base bolsonarista “não tem em seu centro questões programáticas ou propositivas, mas é construída a partir da negação (antipetista; antipartidário; antissistêmico; anti-corrupção)”, o que acirra ainda mais os vetos e gera sérios problemas de comunicação, como o episódio do veto ao aumento do diesel, em que o suposto responsável pelo assunto (Paulo Guedes) recebeu a notícia depois que a imprensa.
Se é assim, aderir ao presidencialismo de coalizão produziria duas consequências complementares. Em primeiro lugar, os vetos dos novos sócios, uma vez sobrepostos aos antigos, acarretariam defeitos paralisantes no governo. Segundo, a indistinção entre o “nós” e “eles” romperia as clivagens simbólicas que patrocinam a mobilização contínua dos bolsonaristas. O que está em jogo, como viu Eliane Brum, não é a administração pública, mas a administração do ódio. Por isso, assim como a energia antissistêmica contra a “velha política” não pode arrefecer, Bolsonaro e os filhos não perdem uma oportunidade de atacar a desfuncionalidade das instituições, aproveitando a mínima brecha para atualizar o ódio mobilizador. E a realidade, por sua vez, ajuda: as ações do STF contra as “fake news”, a condenação do comediante Danilo Gentili e a tentativa de homicídio oferecem motivos fáceis para que o presidente atribua a pecha do autoritarismo às instituições e oposição. No fundo, não há nada para que Bolsonaro torça mais do que pela decisão de soltura de Lula. O que importa é que, até lá, ele controle os três elementos mais importantes numa possível revolta: o exército (porque tem as armas); os caminhoneiros (porque travam o país); os bolsonaristas (porque arca com a violência necessária).
Na mesma medida em que reproduz a instabilidade, Bolsonaro terá que realizar ao menos “composições transitórias” (a expressão é de Mourão) junto ao Congresso, como está ocorrendo na reforma da Previdência. Ainda que insinue uma cumplicidade entre o presidente e o Centrão, essas flexibilizações pontuais são apenas o mínimo necessário para retomar algum nível de crescimento, pois a estagnação não deixa de ser o maior perigo para a inviabilidade do seu governo. Ainda assim, à cada rodada, a imprensa especulará que o governo está consentido aos velhos modos. Mas o fato é que Bolsonaro não pode abandonar a lógica antissistêmicas sem abrir mão da mobilização permanente dos seus eleitores mais inflamados. Até porque, por mais que a Forças Armadas seja a instituição mais pretigiada com a população brasileira, os militares não possuem uma máquina partidária, cabendo aos bolsonaristas o protagonismo nas eleições. Pode parecer pouco mas é suficiente: há grandes chances do segundo turno em 2022 ser novamente entre Bolsonaro e o PT, quando o inimigo comum pode novamente reunir a direita que atualmente está se afastando.
O problema dessas coalizões pontuais é que, como reza a lenda, a ausência da maioria parlamentar resultará em inúmeras derrotas ao governo, tal como ocorreu com a emenda do Orçamento Impositivo e o decreto dos documentos sigilosos. A sequência de derrotas inevitavelmente reforçará o poderio dos parlamentares, os mesmos que já afastaram dois presidentes, ameaçam uma emenda de parlamentarismo para 2022 e participam de encontros na FIESP e no exterior. Resta saber em que medida o governo balança mas não cai. Até agora, o que já se sabe é que, no tronco ao lado, Mourão está fantasiado de tucano e pronto para voar.