Não há pobreza na velhice no Brasil
É ótimo que as pessoas estejam vivendo mais! As discussões sobre a Previdência às vezes insinuam, mesmo que sem querer, a elevação da expectativa de vida como um entulho ao desenvolvimento do país. A vida longa é uma conquista civilizatória, sobretudo no caso brasileiro em que a longevidade destoa dos indicadores sociais negativos. A transição demográfica que estamos vivendo, o tão falado “fim do bônus demográfico”, consiste basicamente em que pessoas vivem mais e tem menos filhos. E menos filhos também é uma conquista! Não pela coisa em si (eu tenho um filho e amo), mas porque a redução da taxa de fecundidade é resultado da urbanização, escolarização e principalmente da autonomia das mulheres.
O melhor dado para medir a longevidade não é a expectativa de vida ao nascer (atualmente em 75,8 anos). Considerando a vida desde o nascimento, o número final é alterado pela violência urbana e mortalidade infantil que diminuem a expectativa, mas não tem relação direta com o bem-estar na velhice. Por isso, o dado mais coerente é da expectativa de vida aos 65 anos. Atualmente, cada brasileiro que chega aos 65 anos espera alcançar 83,5 anos (81,8 para homens e de 85 para mulheres). Nos Estados Unidos, a mesma expectativa é de 84,4, menos de um ano a mais que no Brasil.
Entre 1980 e 2010, a sobrevida dos homens aos 60 aumentou em 42% e das mulheres em 31%. Para além de fatores importantes como as inovações médicas, os ganhos de sobrevida é efeito dos avanços da Constituição de 88. Ali, o BPC (Benefício de Prestação Continuada) e a Aposentadoria Rural foram nivelados ao salário mínimo (corrigidos segundo a inflação), além da redução da idade mínima da Rural. Em consequência, não somente a expectativa de vida cresceu, mas o caráter global da Previdência tornou ínfimas as diferenças entre os Estados (Rondônia é o único abaixo de 81 com 80,9 anos). Discutir a previdência não é só chamar atenção quanto as contas públicas, pois também importa soar o Brasil que deu certo!
A grosso modo, a Previdência não foi pensada como um mecanismo de redistribuição de renda. O principal problema é a dualidade do sistema previdenciário que privilegia o RPPS dos altos funcionários públicos e militares. Mesmo que a contribuição desses seja um pouco maior, a aposentadoria integral com reajustes proporcionais aos servidores da ativa extrapola muito a alíquota maior inicialmente. 15% do total da Previdência fica restrita ao 2% mais rico da população.
No RGPS, as desigualdades continuam por motivos óbvios, já que a aposentadoria é destinada para quem trabalha de carteira assinada durante um tempo considerável, o que não atinge boa parte da população que trabalha no mercado informal ou não contribui tanto tempo. Além disso, como o benefício é proporcional a contribuição pretérita, a abissal desigualdade dos rendimentos do trabalho no Brasil induz, por sua vez, que o valor das aposentadorias reflita essa desigualdade.
A despeito dessas falhas estruturais, a questão muda quando avaliamos os efeitos das aposentadorias e pensões iguais a um salário mínimo. O BPC e a Aposentadoria Rural produzem consequências progressistas porque os beneficiários eram tão pobres que os valores recebidos, ainda que menores que as demais aposentadorias do sistema, permite se aproximem das demais classes (ao menos na velhice).
O gráfico de Paulo Taffner e Pedro Fernando Nery demonstra os efeitos do BPC. A pobreza extrema diminui ao mesmo tempo que o centro do quadro é inchado. O que não significa que seja uma “sociedade classe média”, pois a posição intermediária do gráfico equivale a não mais que uma família com um salário mínimo per capita.
Na prática, se olharmos bem, a pobreza na velhice praticamente deixou de existir! A íntima conexão disso com a elevação da expectativa de vida não é difícil de adivinhar.
Sem a previdência, o cenário seria completamente diferente. Como demonstra o gráfico de Esther Dweck, Pedro Rossi e Arthur Welle publicado no Nexo, se a pobreza dos idosos atingiria 60% na ausência do sistema previdenciário.
Mesmo com defeito de focalização, a Previdência ainda funciona como um poderoso mecanismo de mobilidade social do país. Esta percepção está internalizada no modo de vida dos brasileiros, basta notar como são comuns os planos de vida que situam a velhice como o momento futuro em que terá lugar algum conforto. Não somente porque a idade chega e param de trabalhar (na maioria das vezes não param), mas pela providência do Estado que finalmente alcança.
Se ainda é muito pouco para o Estado social almejado pela carta de 1988, não deixa de ser um degrau civilizatório. A aposentadoria corresponde a uma garantia de renda em contrapartida a perda da capacidade laboral (uma espécie de seguro contra a idade avançada), e vale lembrar que essas pessoas que não trabalharam de carteira assinadas acabam expostos a modos de trabalho ainda mais degradantes — o que é óbvio no caso da aposentadoria rural, mas muitas vezes encoberto quando se trata do BPC. É importante falar disso porque (pasmem!) existe quem critique o benefício ser desatrelado de anos de serviço formalmente registrados, muito embora sejam as mesmas pessoas que não criticam quem vive de outras rendas não vinculadas ao trabalho (recebimento de aluguéis, ações na Bolsa, aplicações portadoras de juros).
Em termos de estímulo ao desenvolvimento, vale destacar o importante efeito do multiplicador fiscal dos benefícios mínimos da Aposentadoria. No gráfico acima de Marcelo Neri, Pedro Vaz e Pedro de Souza, o “multiplicador fiscal” mede o impacto sobre o gasto das famílias de cada gasto público com benefícios sociais. Para cada R$ 1 pago no BPC, o multiplicador é de R$ 1,54, o que significa que é um gasto expansionista que traz imensos ganhos no curto prazo, principalmente em cenários que não exista perigo inflacionário.
Isso se explica, em larga medida, porque as famílias que recebem o BPC não estão tão afastadas da pobreza e qualquer dinheiro que ganhem a mais vão acabar gastando. Em períodos de crise, isto é importante porque significa um efeito anti-cíclico, tanto por causa do multiplicador fiscal, quanto porque se trata de um dinheiro autônomo que não está submetido às intempéries do desemprego como o salário. Em 2017, o número de casa em que mais de 75% do ganho vinha dos idosos subiu 12%, o que auxiliou a economia permanecer girado. Uma vez que o Brasil é um país que onera excessivamente o consumo (e pouco a renda e os ganhos financeiros), uma boa parte do benefício volta ao governo na base de impostos, já que os beneficiárias gastam tudo no mercado de massas e sequer investem.
A proposta enviada pelo Planalto prevê a redução dos valores do BPC e da Aposentadoria Rural. Conforme demonstrei o sucesso dessas políticas, julgo que é um completo desatino alterá-las — tanto porque as esferas regressivas da Previdência são outras, quanto porque parte do impulso da retomada do crescimento virá necessariamente do consumo interno, já que o cenário externo não promete melhorar.
Mesmo que até partidos de centro já apoiem a retirada das novas regras do BPC e Aposentadoria Rural, destacar a sua importância equivale a sugestão de que o dinheiro economizado da Previdência não seja canalizado para o pagamento de juros. Para tanto, adotaria-se um modelo gradual de redução da dívida pública em paralelo ao fortalecimento dos demais programas sociais como o Bolsa Família. Além de também ser um colchão social, o BF possui grande multiplicador fiscal (como vimos no gráfico acima) e endereça a formação de crianças e jovens, o que traz importantes ganhos de produtividade — estas são, afinal, as duas das chaves do desenvolvimento: consumo das família e ganhos de produtividade.
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Esse é o 4º texto da série sobre a reforma da Previdência. Os anteriores podem ser conferidos aqui (01, 02, 03).