O anti-trumpismo de Joe Biden
O sentimento perante o discurso de posse de Joe Biden foi ambíguo. Mesmo que não seja um orador da mesma classe de outros democratas como John Kennedy, Daniel Patrick Moynihan, Bill Clinton ou Barack Obama, desta vez Biden convenceu mais que nos debates eleitorais. Apenas duas semanas após a invasão do Capitólio pelos apoiadores do ex-presidente Donald Trump, Biden fez um discurso forte e envolto nos caracteres que supostamente expressam o anti-trumpismo da era que acaba de nascer: união, democracia, vontade do povo, soul of this nation. “Prometo a vocês o seguinte: serei um presidente de todos os americanos”, afirmou Biden.
O receio da esquerda do Partido Democrata — representada por Bernie Sanders, mas não apenas — é que essa abertura ao diálogo se confunda com a expectativa de que os republicanos estarão dispostos a cooperar com a reconstrução do país. Ainda que tenha conquistado a maioria em ambas as casas do Congresso, Biden tem dado sinais de que pretende usar sua experiência de 36 anos como senador para negociar amplos acordos bipartidários em torno das suas propostas. Assim como Lyndon Johnson usou sua bagagem no Congresso para negociar acordos que o antecessor John Kennedy não conseguiu, Biden espera fazer o mesmo para superar os impasses enfrentados por Obama. O ex-presidente norte-americano também tinha a maioria nas duas casas quando eleito em 2008 e ainda assim insistiu na construção de amplos acordos para a aprovação dos projetos econômicos, muitos dos quais acabaram aprovados com cortes substanciais. A consequência foi a derrota dos democratas nas eleições legislativas de 2010 e a perda do controle da agenda de política até o final do governo.
Caso repita a estratégia, os programas econômicos prometidos por Biden durante a campanha podem sofrer resistências consideráveis. Por um lado. democratas e republicanos possuem o mesmo número de senadores (50) e a maioria azul é conquistada somente pelo voto de desempate da vice Kamala Harris. Por outro, os republicanos podem acionar o mecanismo de filibuster (obstrução) que trava a discussão de determinado tema para que só uma maioria qualificada possa decidir a questão.
A linha defendida pela esquerda do partido de Biden envolve um outro mecanismo do Senado conhecido como reconciliation que acelera a votação de projetos orçamentários no Senado, além de permitir que o projeto seja aprovado apenas com maioria simples. Trump, com efeito, abusou do mesmo procedimento sob críticas dos senadores democratas já que a reconciliation limita o espaço de ação da minoria congressual. Desta vez, no entanto, a urgência da situação de votar projetos contra a pandemia não só justifica, como torna o único caminho possível diante de um Partido Republicano ainda liderado por Trump e dedicado a acionar a filibuster tão somente para obstruir as propostas de Biden, e não rediscutí-las.
“Temos que agir com uma ousadia que não vimos neste país desde Franklin Delano Roosevelt. Se não o fizermos, suspeito que em dois anos não seremos a maioria”, afirmou Bernie Sanders a NBC News. O líder da esquerda do Democrata se refere a mobilização de Roosevelt junto a sindicatos, imigrantes e intelectuais que garantiu a pressão sobre o Congresso e a consequente aprovação de reformas importantes. O chamado New Deal revolucionou a relação entre os americanos e o Estado por meio da garantia de proteção social, de serviços públicos e a guinada de milhões de americanos brancos para a classe média por meio do trabalho assalariado.
A ascensão de Trump se deu justamente sobre os destroços dessa classe média de colarinho azul que representava a espinha dorsal da sociedade americana — em outras palavras, os excelsos representantes do american dream. Estudos mostram que regiões mais expostas à importação de produtos chineses, por exemplo, revelaram-se mais propensas a apoiar os políticos de extrema-direita. Esses trabalhadores perderam não só os empregos, mas o próprio papel simbólico na sociedade americana, vistos desde então como “atrasados” pelas franjas de colarinho branco (seja porque não acompanharam a revolução nos costumes, seja porque não dominam o know-how do novo ambiente high tech) e transtornados pela impotência de que nem mesmo a branquitude e a masculinidade se mostraram proteções efetivas contra a pauperização. Como viu Wendy Brown, em seu recente Nas Ruínas do Neoliberalismo, o empobrecimento da população desde os anos oitenta gerou a ruína do sonho americano, a perda de confiança no funcionamento do capitalismo liberal e, por fim, na “desintegração niilista do pacto social” encarnada na eleição de Trump.
Para refazer o pacto social — desta vez incluindo mulheres, negros, imigrantes e trabalhadores rurais que estavam excluídos do emprego assalariado formal urbano no New Deal — Joe Biden terá que lidar com uma economia em que a pandemia destruiu mais de 20 milhões de empregos e acelerou ainda mais a mecanização dos postos de trabalho. Impostos progressivos, infraestrutura e investimentos em saúde e educação são essenciais — embora tampouco suficientes para garantir uma acelerada recuperação dos empregos, tampouco para reverter o deslocamento das cadeiras produtivas para regiões em que o trabalho tem preço de banana.
Em recente artigo intitulado “How Biden Can Create Good Jobs”, o economista Dani Rodrik reconheceu que incentivos fiscais e subsídios têm se revelados caros e ineficientes para atrair as grandes empresas de volta ao país. Em lugar disso, será preciso uma nova estratégia de desenvolvimento que “qualifique os trabalhadores e forneça os incentivos tecnológicos para a formação de um segmento suficientemente grande de empresas pequenas e médias que sejam produtivas e capazes de expandir o emprego”. Trata-se, afinal, de recriar uma sociedade do trabalho numa época em que o trabalho, tal como conhecíamos, não existe mais — disso depende a superação do trumpismo.
Para tanto, será essencial aproveitar o tempo e aprovar o máximo de medidas domésticas até a eleição de meio de mandato. Após eleito em 1932, Roosevelt apostou nessa estratégia e acabou conquistando novamente a maioria do Congresso na eleição de 1934. “A restauração, entretanto, não exige mudanças apenas na ética. Esta nação pede ação e ação agora”, afirmou em seu discurso de posse.