O BNDES na política econômica do PT (II)
O malogro do liberalismo tucano em destravar o crescimento ficou patente na disputa eleitoral em 2002, quando o assunto voltou à luz nos debates entre os candidatos e mesmo no programa eleitoral, José Serra, onde admite-se que “a principal dificuldade do Brasil nesse período foi que o crescimento econômico não se acelerou tanto quanto seria necessário para multiplicar as oportunidades de trabalho e os recursos investidos nas políticas sociais”. A admissão de culpa, no entanto, não foi suficiente para convencer os eleitores. Lula foi eleito e a surpresa deu-se quando o petista conversou o tripé macroeconômico e cresceu moderadamente (média de 3,5% durante o primeiro mandato) muito puxado pela alta das exportações. Durante o período Malocci — nome dado por Samuel Pessoa à continuidade das políticas de Pedro Malan (ministro de FHC) e Antônio Palocci (ministro de Lula) -, o maior êxito do PT foi controlar a inflação e o câmbio que dispararam após sua eleição, mas principalmente acabar as dívidas em moeda estrangeira e acumular um grande volume de reservas internacionais.
O diferencial petista é que, à medida que tomou as rédeas e garantiu a confiança do mercado, Lula tomou decisões que não coincidiam com o tripé macroecônomico mas nem por isso o contrariavam, explorando alternativas que pelo menos moderassem os efeitos do pacto estabilizador sobre o consumo e os investimentos produtivos. Ainda no primeiro mandato, além do Bolsa Família e a valorização do salário mínimo, o PT facilitou linhas de crédito junto aos bancos comerciais (crédito consignado) para pessoas física. O verdadeiro impulso foi no segundo mandato (já com Guido Mantega na Fazenda e Luciano Coutinho no BNDES), quando o governo implementou, em paralelo aos investimentos públicos do PAC, uma vigorosa política de crédito à pessoa jurídica através do BNDES, criando linhas preferências e aumentando os desembolsos.
Assim, por mais que o governo conservasse o câmbio valorizado, os juros elevados e os superávits primários, a atuação do BNDES garantiu um dinamismo a economia sem romper os parâmetros do tripé. Logo em seguida, a explosão da crise de 2008 reforçou a importância do banco público, já que o mercado passou por um período de exacerbada preferência pela liquidez e aversão ao longo prazo que congelou o mercado de crédito. Entre dezembro de 2008 e dezembro de 2015, o estoque de crédito dos bancos públicos passou de 14% para 30% do PIB, enquanto o dos privados recuou de 17% para 16%.
Munido de um orçamento mais robusto, BNDES aumentou tanto o financiamento do capital de giro de micro e pequenas empresas, quanto os empréstimos de longo prazo a grandes empresas. Criou o Programa de Sustentação do Investimento (PSI) que subsidiava linhas de crédito para a compra de máquinas e equipamentos nacionais. Incorporou-se em várias parcerias público-privadas. Alargou a carteira do BNDES-Par com participações em empresas estratégicas (Embraer, Gerdau, Bertin, Votorantim, Friboi, etc). Através da expansão do BNDES, várias empresas brasileiras se capacitaram a acessar a competição monopolista do capitalismo global, destacando-se os aportes do BNDES para as empresas exportadoras de produtos primários e as empreiteiras com projetos de infraestrutura física e energética em países emergentes. O sucesso permitiu que o PT elegesse com relativa facilidade a presidente Dilma Roussef, até então desconhecida do grande eleitorado.
Daí em diante, deve-se levar em conta que a crise de 2008 foi também a crise das ideias econômicas liberais, dando origem a um novo consenso internacional que pregava maior regulação e participação do Estado na economia (ver, por exemplo, o influente Fiscal policy in a depressed economy de Lawrence Summers e Brad De- Long). Somado a isso, o governo Dilma identificou o esgotamento das estratégias em voga (o país já sofria pela descontinuidade da escala de oferta e evasão de demanda ao exterior), julgando necessário romper o apego ao tripé macroeconômico para sustentar o crescimento. Assim, em meio a desvalorização do câmbio, a redução forçada dos juros e a diminuição do superávit primário, o governo aumentou o orçamento do BNDES por meio do funding lastreado pelo Tesouro Nacional, utilizando a dívida pública como instrumento direto de financiamento. Em outras palavras: enquanto, nos países centrais, a crise de 2008 levou os Estado a injetarem vultosas quantias no sistema financeiro (a exemplo do Quantitative Easing), em nosso caso foi o sistema produtivo, por intermédio do BNDES, que foi abastecido.
Dado a complexidade do tema, não vou entrar em maiores detalhes sobre a trama da política econômica de Dilma, restringindo-me às principais consequências relativas a atuação do BNDES.
1) Má alocação de recursos
É provável que já tenham escutado que o governo Dilma alimentou “a expansão do crédito subsidiado, sobretudo por meio do BNDES, para estimular o investimento, com forte discricionariedade em relação aos favorecidos”, opinião aqui verbalizada por Samuel Pessôa e Marcos Lisboa mas amplamente compartilhada. A questão é que uma rápida olhada nos dados parece sugerir outra coisa. Em 2009, o número de empresas apoiadas pelo BNDES era 108 mil; já em 2014, eram 277,3 mil. Dentre as quais, a porcentagem das micros cresceu de 2,7% para 6,3%; as pequenas de 9% para 17,5%; as médias de 16,7% para 26%.
Como viu bem Ricardo Carneiro, “a preocupação com a ação do BNDES deveria estar relacionada não à concentração de recursos, mas à sua pulverização”. Afinal, essa perda de seletividade levou o banco a financiar setores que poderiam se financiar de outra forma e sem impôr contrapartidas de metas de investimento, como também prejudicou o foco de ampliação nos segmentos que seriam determinantes para o programa desenvolvimentista.
O Programa de Sustentação do Investimento (PSI), por exemplo, foi uma ação anti-cíclica do governo Lula contra os efeitos recessivos da crise, mas foi prorrogado por Dilma junto ao lançamento do Plano Brasil Maior em 2011. O resultado foi que os estímulos demasiados geraram capacidade ociosa e a dívida acumulou, em que o melhor exemplo foi o aumento da frota de caminhões que desembocaria na greve dos caminhoneiros anos depois. Fora isso, ocorreram intervenções em áreas que não são estratéficas e nem possuem meios de funcionar sem os subsídios, o que acaba gerando uma dependência permanente e perniciosa, como foi o caso da indústria naval.
2) Pressão sobre a taxa Selic e os spreads bancários
O aumento dos empréstimos do BNDES causou ineficiência no mercado de crédito ao pressionar a taxa Selic e os spreads bancários. Em relação a esses últimos, a pressão se deu porque o BNDES financiou empresas que poderiam se financiar de outro modo, deixando ao mercado as empresas de maior risco que não receberam subsídios. Para compensar o risco, os bancos naturalmente aumentaram os juros. Já em relação a Selic, o crédito barato distribuído em larga escala surtiu pressões inflacionárias que o Banco Central precisou corrigir pelo aumento da taxa básica.
Pode-se dizer ainda que a pressão sobre os preços foi intensificada pela oligopolização decorrente de empréstimos do BNDES, os quais geraram players internacionais ao mesmo tempo que coibiram o mercado interno. Um bom exemplo é o caso da Friboi, que recebeu dinheiro do BNDES, tornou-se forte internacionalmente e comprou todos os pequenos frigoríficos do mercado brasileiro.
3) Aumento da dívida pública
Como vimos antes, o governo se valeu da dívida pública como instrumento de financiamento do BNDES. O acréscimo da dívida era proporcional a diferença entre a taxa Selic (com que o Tesouro se financiava) e a TJLP (a taxa de juros de longo prazo com que o BNDES realizava seus empréstimos). A partir do momento em que o Banco Central precisou segurar a inflação, a dívida cresceu junto ao forte aumento da Selic. Entre 2009 e 2013, o BNDES recebeu mais de R$ 500 bilhões e saltou de 7% para 58% a importância do Tesouro no caixa do BNDES, tornando-se assim a sua principal fonte. Os empréstimos do banco estatal, então somado a outras causas (déficit primário, crescimento negativo do PIB, aumento dos juros), determinaram a inflexão na trajetória da dívida.