O Brasil entre a extrema-direita, a centro-direita e a esquerda
A pandemia e as eleições municipais reconfiguraram a direita brasileira e assim engendraram um quadro partidário inédito para as eleições de 2022.
A postura de Bolsonaro diante da pandemia constrangeu a centro-direita até então conivente aos desmandos autoritários do presidente. Já o resultado das eleições municipais gabaritou a competitividade do bloco dessa centro-direita formada por PSDB, DEM e MDB, que irão governar capitais importantes como São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Porto Alegre. O resultado disso é que estamos diante de uma novidade: a disputa entre três polos partidários — a extrema-direita de Bolsonaro, a centro-direita e a esquerda — que diverge da disputa polarizada entre PSDB e PT e, mais recentemente, entre Bolsonaro e PT.
Analiso brevemente os desafios de cada um dos três blocos.
A extrema-direita de Jair Bolsonaro (PP, PL e Republicanos)
A extrema-direita, encabeçada pelo presidente Jair Bolsonaro, arrasta partidos como PP, PL e Republicanos que atualmente formam a base do governo no Congresso. Ao contrário da liderança exercida pelos ex-presidentes FHC e Lula sobre os respectivos partidos da base, Bolsonaro tem dificuldades em mediar e articular posições e, pior, perdeu o poder de iniciativa política desde que pressionado pelas investigações sobre os filhos e o gabinete do Ódio.
O presidente, desde então, tornou-se dependente desses partidos do Centrão — seja para que o protejam de eventual processo de impeachment, seja para que viabilizem a sua candidatura em 2022, ainda mais depois que PP, PL e Republicanos recém-conquistaram uma considerável base de prefeitos que pode ser decisiva para levá-lo à reeleição. Para se ter uma ideia, o PP aumentou em 38% o número de prefeituras — especialmente no interior do Nordeste, além do Sul e Centro-Oeste, onde Bolsonaro disputará o apoio das oligarquias rurais do agronegócio com a centro-direita.
A jogada dupla é que, enquanto esses partidos preparam a sua reeleição, a adesão de Bolsonaro, alguém com carisma e apelo popular, fornece-lhes a oportunidade de superarem o MDB, o partido que historicamente liderou o Centrão e as coalizões que integraram a base dos governos desde a redemocratização. Exemplo disso está na disputa para a presidência das casas do Congresso — postos que o MDB tradicionalmente ocupa — em que políticos de PP e Republicanos esperam a vitória com a ajuda do presidente.
Fica a pergunta, afinal, como os eleitores reagirão ao fato de Bolsonaro, uma figura ideológica, instaurar uma relação tão direta com partidos que trabalham numa relação clientelista, e não ideológica, com o seu eleitorado? Não é demais esperar que parte da combatividade dos bolsonaristas, fator decisivo para a vitória em 2018, esteja atenuada em 2022 — só resta saber se os prefeitos recém-eleitos do Centrão serão cabos-eleitorais bons suficientes para compensar a perda.
A centro-direita democrática (PSDB, DEM, MDB)
Ao contrário da direita fisiológica e menos programática, a centro-direita de PSDB, DEM e MDB sustenta um programa neoliberal propriamente dito — no qual constam as privatizações, a livre entrada e saída de capitais, o Teto de Gastos — e cuja base social é formada pelos que recentemente se tornaramm críticos ao presidente: a classe média urbana e o establishment em que se incluem o judiciário e a mídia.
Os parlamentares do bloco votam constantemente com o governo nas pautas econômicas e até pouco tempo acreditavam que domesticariam Bolsonaro. O limite, com efeito, parecem ter sido as tentativas claramente golpistas, os ataques despropositados a China e a gestão do meio ambiente, sem falar da postura perante a COVID, a partir das quais o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), liderou uma ofensiva do bloco contra o governo.
As eleições municipais animaram a centro-direita, não só pela vitória em várias capitais, mas porque os fracassos de PT e Bolsonaro lhes convenceram de que há espaço para uma alternativa de centro — não ao estilo de Doria em 2018, e sim de Covas em 2020. Faltam-lhes, no entanto, duas coisas essenciais:
1) Lideranças e porta-vozes nacionais para a disputa presidencial, sobretudo porque nomes como Doria, Huck e Mandetta parecem apenas “um bolsonarismo de butique, suave e racional (…) frágil contraponto ao bolsonarismo legítimo, forjado nas brasas do extremismo e do populismo”, como escreveu o jornalista Demétrio Magnoli.
2) Uma renovação do programa que, de fato, conecte-os à agenda política urdida pela pandemia — mais voltada à defesa da atuação do Estado do que a sua modernização desburocratizante — o que exige um improvável retorno ao liberalismo social-democrata do PSDB de trinta anos atrás e a léguas de distância do dorismo.
A esquerda (PT, PSOL, PCdoB, PDT e PSB)
O bloco da esquerda vai de PT, PSOL e PCdoB até PDT e PSB, então marcado pela disputa entre essas duas pontas pela liderança do bloco. O projeto de Ciro Gomes era garantir a hegemonia da dupla PDT e PSB através das eleições municipais, nas quais ambos partidos fecharam alianças em várias capitais, sendo que a derrota prematura de Márcio França (PSB) em São Paulo e Martha Rocha (PDT) no Rio colocou água no chopp do líder trabalhista.
Portanto, é previsível que pelo menos duas candidaturas disputem o voto da esquerda no primeiro turno em 2022. Só é difícil imaginar, no entanto, que o PT (ao redor do qual também orbitam PSOL e PCdoB ) não acabe se tornando o polo aglutinador da esquerda — para se convencer, basta observar o desempenho do partido em eleições presidenciais desde 1989 — muito embora a mera dúvida sobre a sua hegemonia já deveria ser motivo suficiente para a direção petista abandonar a autoindulgência e ensaiar novos rumos.
Para além das disputas no interior do bloco, a força da esquerda em 2022 dependerá da narrativa a ser forjada durante a travessia da crise econômica que se avizinha. Em outras palavras: cabe a esquerda se conectar ao sentimento da população que sofrerá com o fim do auxílio emergencial, o mercado de trabalho arruinado e a inflação de alimentos, de modo a se aproveitar do momento em que a conjuntura acirra o desemprego e a queda da renda para firmar sua posição progressista e as memórias dos governos de esquerda (2003–2016) que combateram os problemas sociais de maneira inédita no país. Será preciso reestabelecer a conexão com a juventude e a revolução digital, como logrou a campanha de Boulos em São Paulo, além do trabalho político cotidiano de organizar os setores flagelados pelo governo Bolsonaro, para só assim responder à altura o complexo ideológico do antipetismo que novamente neutralizou a esquerda nas eleições municipais.
De fato, é importante para a democracia que a direita tenha se dividido em dois blocos, já que assim a centro-direita limita a direita propriamente dita. Mas também cria novos desafios para a esquerda já que, daqui em diante, não basta apenas se diferenciar de Bolsonaro. Então mãos à obra.